Não há política sem sonho e dizê-lo é como dizer que não há política sem utopia, sem a imaginação do futuro, a liberdade de o conceber, ir fazendo caminho, ir ajeitando-o, e nisto realizarmo-nos como comunidade livre de cidadãos.
A utopia é um projecto que não se concebe sem imaginação e a imaginação, por racionalmente que possa ser conduzida, não se exerce sem ressonâncias das vidas que levámos, as biografias, os sofrimentos, as alegrias, abrindo o horizonte do possível. Até mais, como aquela palavra de ordem paradoxal no Maio de 68 – Soyez réalistes, demandez l’impossible.
Sem sonho, a política é apenas a administração do possível, mecânica sem vida. Ou pior: enfronha-se na racionalidade do caminho único, da luta pelo escasso, sem vislumbrar a abundância de outros caminhos. O sonho como componente da existência política traz dentro a tensão do impossível que nos move.
De outro modo ainda, que Jacques Rancière captou perfeitamente em “A Noite dos Proletários – Arquivos do Sonho Operário” (1981): apesar do trabalho sem direitos das indústrias do século XIX, operários emancipados subvertiam as noites, em que deveriam restabelecer a força para a jornada intensa a que estavam condenados na manhã seguinte, dedicando-as à leitura, ao olhar artístico sobre as coisas, à criação. E esta era uma experiência de igualdade de imaginação e de sonho. Antes de operários explorados, cada um superfície sonhadora, pelos poros de todas as formas de pele por que estamos no mundo.
A política do sonho não passa verdadeiramente sem se sonhar a própria política como outra coisa, menos prisioneira da competição pelo poder e do exercício do poder que se lhe segue. Pelo contrário, uma política do não-poder. Se a política é sobre a polis, ou seja, sobre o conjunto dos que se reconhecem como cidadãos de uma comunidade, então não há nela nada que nos obrigue a encará-la como um projecto de poder. Há que fazer a crítica à concepção de política como poder.
Arendt disse-o quando se opôs a uma concepção da política como vontade. Por exemplo, o soberano pensado como “vontade geral”, a própria ideia de soberano se tomado como a contraparte de súbdito, mesmo se coincidam soberano e súbdito no peito de cada cidadão, como sonhou Rousseau. Ou ainda o exercício genial de Thomas Hobbes, de recorte cartesiano, a régua e esquadro, um pesadelo no entanto, de um poder a que nenhum outro na Terra se compararia, um Leviatã, como o monstro do livro de Job. Diremos que essa é a crítica que o liberalismo apontou ao absolutismo.
Mitigar o poder do Estado, conter a tirania das maiorias. O que é só parcialmente verdade, pois quase sempre o liberalismo conteve o poder na instância política, sob desconfiança, para o libertar na esfera privada da vida em comum. Veja-se o neoliberalismo e o seu afã de que o Estado não contenha o poder dos privados, das multinacionais. Pode parecer uma cassete, mas há algo de verdade nisto: em democracia, o Estado pode contar mais pelo lado dos que querem conter poder do que ser poder.
Mas isto é só um princípio de conversa. Nos tempos que correm, para entrar a sério numa conversa sobre o sonho em política, ele tem de ser ainda outra coisa, que não é mais nem menos, mas que faz uma diferença enorme, tão grande que obriga a sairmos dos quadros de pensamento em que nos formámos. É preciso descentrar radicalmente. O próprio modo de sonhar e o que deles esperamos, tem de ser sonhado.
O líder, activista e filósofo indígena Ailton Krenak, num livro que leva o título “Ideias para Adiar o Fim do Mundo” (2019), fala do sonho como uma instituição, ou seja, o sonho “não como experiência quotidiana de dormir e sonhar, mas como exercício disciplinado de buscar no sonho as orientações para as nossas escolhas do dia a dia.” E acrescenta, clarificando essa possibilidade de uma outra atitude para com o sonho: “Para algumas pessoas, a ideia de sonhar é abdicar da realidade, é renunciar ao sentido prático da vida. Porém, também podemos encontrar quem não veria sentido na vida se não fosse informado por sonhos, nos quais pode buscar os cantos, a cura, a inspiração e mesmo a resolução de questões práticas que não consegue discernir (…).”
Novas maneiras de conviver com o sonho são a frincha por que talvez possamos encontrar outra base para o convívio e para um entendimento das suas relações libertado do pressuposto do domínio de uns sobre outros. Há uma ecologia do sonho presente no quotidiano distante de comunidades que não pensam da maneira como se pensa no Ocidente e que, hoje, são luz para nos orientarmos.
Também a ciência aponta ao sonho poderes que as nossas vigílias não deixam manifestar-se em toda a sua latitude. É no sonho que as ideias se aclaram. Deitarmo-nos com um problema por resolver e acordar com ele resolvido. Na paragem do corpo que dorme, outras formas de actividade têm lugar. É no sonho que as dúvidas sobre afectos se resolvem, confirmadas no acordo íntimo.
Talvez nos iludamos também nos sonhos, mas talvez nos iludamos menos. Há uma sinceridade da mente consigo própria no sonho. Talvez porque sonhar seja mais da ordem do que nos acontece do que do que fazemos acontecer. O sonho torna-nos disponível para relações inesperadas com tudo em volta, devolvendo a tudo uma possibilidade de voz, sem distinções definitivas entre o humano, o animal, o vivo, o inorgânico. Tudo fala, ou pode falar, no sonho. Há nele uma vocação ecológica e comunitária, pele absoluta para com tudo.
Os oito sonhos do filme de Akira Kurosawa (“Sonhos”, 1990) quase sempre trazem a voz da natureza. Alguns são pesadelos – a guerra, o acidente nuclear, a guerra atómica. Mas alguns são sonhos, dois deles sonhos de apaziguamento ecológico.
O jardim dos pessegueiros é um desses sonhos. Uma criança chora pelo abate dos pessegueiros num terreno em socalcos da sua família. E é então posta diante da pergunta grave sobre se chora por não poder mais colher pêssegos ou por não poder mais ter a experiência dos pessegueiros a florir. Ela responde porque chora e é gratificada pelos espíritos das árvores e das flores com a alegria da chuva de pétalas e cores. A resposta dela tinha sido: “Não! Os pêssegos podem ser comprados, mas onde comprar um jardim inteiro em flor?” No fim, como se uma lucidez despertasse de dentro do sonho, o menino constata que restou apenas um pé de pessegueiro florido, de que se aproxima, e que encara. É da sua altura e tudo nele o convoca.
Em outro sonho, “aldeia dos moinhos de água”, enquanto concerta uma roda de moinho, um velho conta a um visitante como a água e o ar que poluímos nos sujam os corações, ao mesmo tempo que dá a ver um lugar idílico onde os aldeões morrem centenários, como a mulher que naquele dia vai a enterrar, um primeiro amor dele, mas que lhe partira o coração e ficara com outro. Então, riu-se como uma criança. É bom viver.
Este sonho, o último do filme, termina com a visão das águas do rio, que correm para jusante, como é natural, e sob elas a vegetação de um rio ondulante, como cabelo solto. E aqui volto ao Ailton Krenak que, em resposta a uma pergunta de alguém do público aquando de uma conferência em Lisboa, em 2017, conta-nos a visão que Dona Laurita, uma senhora da sua aldeia, teve das águas do Rio Doce a subirem em vez de descerem, o mundo ao contrário, antecipando as consequências ali do desastre de uma barragem que rompera, e que levou as águas a correrem contra o seu próprio movimento, deixando-a em estado de choque.
Mas Ailton Krenak conta em seguida o sonho vivido por uma filha da Dona Laurita, em que o rio lhe fala para não ter medo e para mergulhar nele fundo. Fazendo-o em sonhos, a rapariga sentiu, escondido, o rio a correr, vivo, capaz de se regenerar. Contando o sonho à mãe, ela curou-se e, restabelecida, cantou como quem o trata e o ajuda a restabelecer-se, os destinos ligados. Como o menino diante do pé de pessegueiro.
Os rios e as ribeiras são os nossos lugares dos dias de calor. Alguns crescemos nas suas margens, ou vivemos por perto, fazemos deles quotidiano, seja aqui na Estrela, ou no Japão, ou no Brasil. Se nos povoarem os sonhos, certamente viverão melhor. Mas, primeiro, se nos povoarmos com os sonhos. E talvez assim se repovoem dos pirilampos de Pasolini.
O sonho em política é muito mais do que um horizonte utópico para que se caminha. Há nele uma premência realizadora que não cabe numa lógica de contemplação estética. Quando Martin Luther King discursou daquela vez nos degraus do Lincoln Memorial e repetiu tantas vezes a frase “eu tenho um sonho hoje”, como uma ferida aberta que se sente nas palavras cada vez que é dita, este “hoje” repetido diz que a realidade sonhada é imperativa e chega com a autoridade de um âmago de sentido, que é prestado pelo sonho. Constitui-se um dever para com ela. É preciso agir. E também aí o sonho era o da possibilidade de todo o convívio, até o da luta pelo convívio – “poderemos trabalhar juntos, rezar juntos, lutar juntos, ir juntos para a prisão, defender juntos a liberdade, sabendo que um dia seremos livres”. O que podemos sonhar juntos.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.