Parecerá estranho ao leitor falar de um pós-guerra, quando temos um conflito que ameaça estilhaçar a Europa; quando recebemos a notícia de mais um ataque em Gaza que vem confirmar que ali ainda se combate; quando no Iémen se estabeleceu uma trégua temporária para o conflito, ou quando no Sudão do Sul estamos em presença de escaramuças recorrentes que geram continuamente refugiados. Estes são apenas exemplos dos conflitos no mundo. Uns mais próximos geograficamente, outros menos. Uns mediatizados, outros esquecidos.
Na verdade, a paz global tem sido, ao longo dos milénios, dos séculos e das décadas, uma utopia adiada. Talvez a razão seja a própria natureza humana, também ela complexa e dificilmente pacificável, fomente o conflito, mesmo quando procura a paz.
Depois da guerra vêm sempre as convulsões da construção da paz. A passagem do conflito à pacificação não é imediata nem fácil. Trata-se de um caminho árduo que tem de ser construído através do diálogo e, sobretudo, da resiliência e persistência da procura de pontos de equilíbrio. Derrotas absolutas, como aconteceu na Grande Guerra com a Alemanha, e vitórias esmagadoras são amiúde sinal de paz instável e pouco duradoura. As guerras regionais comprovam-no, as guerras mundiais esmagadoramente evidenciam-no.
Assim sendo, estranho que nas guerras em curso se use tão pouco a palavra negociação ou se procurem canais de diálogo, tanto da parte de analistas como de políticos. É como se a guerra se tivesse tornado num tempo e num espaço absolutos e irreversíveis e que uma vitória total trouxesse de imediato a pacificação dos territórios, mas também das mentes humanas, vencedoras e derrotadas.
Derrotar o mal tornou-se a expressão chave. Mas como identificar o mal total e absoluto e o bem imaculado? Existirá num conflito entre seres imperfeitos a identificação da forma ética e moral do bem num dos protagonistas dos conflitos em curso?
A simplificação da guerra, através da mediatização da perspetiva militar, deixando de fora as causas e tensões prévias leva a que um fenómeno complexo, de grande capacidade destrutiva tanto ao nível individual como coletivo, assuma uma visão maniqueísta da realidade. O risco de se ver qualquer conflito a preto e branco e de nos concentrarmos apenas nas ocorrências militares do mesmo, significa perder a oportunidade de pensar uma alternativa ou reforçar as instituições internacionais que podem oferecer opções negociais.
Uma Nova Ordem
Logo após o início da guerra na Ucrânia, um conflito que já dura há mais de cinco longos meses, veio à tona o tema de uma eventual nova ordem mundial que se estaria a gizar e de que esta guerra seria o testemunho. Na verdade, as novas hierarquias mundiais desenham-se entre momentos de tensão e é reconhecido que na esfera internacional estamos prestes a assistir a novos equilíbrios de poder.
Numa orgânica ainda fruto de uma ordem pós-Segunda Guerra Mundial, que encetou os processos de descolonização, de globalização das cadeias de valor e geração de uma maior interdependência ao nível mundial, a distribuição do poder e a forma de desenvolvimento das relações internacionais têm gerado alguma contestação e reflexão por parte dos países agora em fase ascendente.
No contexto asiático, vemos surgir as teorias de um sistema de relações internacionais pós-ocidental, no contexto dos países do hemisfério sul, vem ao de cima a teoria do Sul Global, numa demonstração clara que os padrões de hegemonia gizados a partir do mundo ocidental se mostram agora insuficientes para a explicação da ação destes poderes emergentes.
Mas não só. O fortalecimento de entendimento no seio dos BRICS (originariamente Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e da sua vontade de alargamento a outros estados, a estabilização de organizações internacionais fora do sistema das Nações Unidas e até alternativas ao Consenso de Washington levam a crer que, de facto, está à espreita uma nova ordem internacional.
Contudo, ainda durante a Segunda Guerra Mundial também se refletiu sobre uma Nova Ordem Mundial que de facto singrou. Mas, também se pensou nas causas da guerra e nas formas que uma solução poderia assumir. A reedição do livro de H.G. Wells (1866-1046), exatamente intitulado “A Nova Ordem Mundial”, editado pela primeira vez em 1940, e agora reeditado pela D. Quixote, representa bem a corrente de intelectuais que pensou na governação global como solução provável para os conflitos de interesse das nações que, em geral, desembocavam em tensões que degeneravam em conflitos.
A atualidade do seu livro não vem só pelas supostas comparações que podemos estabelecer entre o período atual e o período ali tratado. A contemporaneidade do pensamento de Wells vem igualmente da identificação das causas dos conflitos, em sociedades onde prevalece o domínio dos interesses financeiros na economia e até na política e pela sobre-exploração dos recursos naturais, usados de forma abusiva por sistemas produtivos que pouco ou nada se preocupavam com o seu desgaste.
Não estará esta reflexão perfeitamente adequada aos tempos que vivemos?
Em troca Wells propõe uma ordem mundial baseada no entendimento para a gestão de recursos potencialmente conflituosos, apesar da manutenção das identidades nacionais. Vai um pouco mais longe e propõe que se generalize a educação ao mundo colonizado para que este se possa autonomizar, reconhecendo capacidades iguais aos povos colonizados, se sujeitos a igual educação.
Numa época em que o processo de descolonização nem sequer estava em causa, podemos ver nestas ideias um olhar mais próximo do contemporâneo do que encontramos na maioria dos intelectuais da sua geração.
Retendo a nossa atenção na proposta de Wells, partilhada em alguns pontos por intelectuais e cientistas seus contemporâneos, percebemos que aí está o espírito fundador da CECA – Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, a que se sucedeu a CEE – Comunidade Económica Europeia, a que veio a suceder a UE – União Europeia.
O objetivo da organização foi-se moldando, é certo, mas o princípio da tentativa de coordenação por sobreposição a uma lógica de concorrência permitiu o mais longo período de paz no seu seio. Os abalos à paz europeia vieram de locais extracomunitários, na ex-Jugoslávia e agora na Ucrânia.
Defensores da conquista da paz pela melhoria das condições de vida de todos, estes intelectuais concordariam em absoluto com o modelo seguido na construção da UE. Contudo, algo falhou neste processo, porque às portas da UE a guerra voltou a surgiu, sem contemplar o custo das perdas humanas e dos traumas gerados. E isso leva-nos a pensar o que teria faltado a esta solução tão próxima dos anseios das gerações que viveram duas guerras mundiais que mudaram para sempre a face do mundo.
Esta reedição constitui, pois, um excelente ponto de partida para pensar a guerra, mas sobretudo para refletir como construir a paz e negociar com os protagonistas da guerra.
Uma cultura de paz
Ao vivermos tão embrenhados na conflitualidade, esquecemo-nos do que é preciso para a paz e para acabar com a guerra.
Numa abordagem ecuménica, o Papa Francisco reflete sobre essa “Terceira Guerra Mundial”, feita em “peças soltas”, mas que já é vivenciada pela humanidade. O seu livro “Contra a Guerra: A coragem de construir a paz”, editado recentemente pela D. Quixote, parte da guerra do Iraque, longínqua para os europeus, mas que também encheu os canais televisivos e os jornais de notícias.
Diz o Papa Francisco que foi no Iraque que pôde tocar o desastre causado por um conflito que, embora tenha desumanizado aquela sociedade, não impediu que lá comecem a despontar sementes de esperança. Na sua perspetiva, enquanto responsável máximo da Igreja Católica, refere o que para si é a causa de todas as guerras: antes de começar através das armas, esta começa nos corações, no ódio que não deixa dialogar, negociar ou ouvir. Considera que as guerras só cessarão se deixarmos de as sustentar.
No fundo, o livro que assina assenta no facto de, com os conflitos armados, ninguém vencer e ser necessário um trabalho contínuo pela paz.
Numa linguagem simples, recorrendo a figuras bíblicas, o Papa exorta a um esforço pela paz, realçando que não existem guerras justas nem justificáveis. Enumera os vários conflitos, na Ucrânia, no Iémen, na Síria, no Sudão do Sul, na Etiópia, na Líbia e na Palestina, para demonstrar como os métodos para a resolução destes conflitos se têm mostrado infrutíferos, reforçando que muitos destes conflitos se caracterizam por serem “guerras por procuração” que mais do que os envolvidos, representam a confrontação de poderes mais hegemónicos.
É o cultivo desta cultura de morte que não tem permitido que a paz sobreviva aos conflitos de interesses dos Estados.
Uma nova ordem, assente na competição ou na paz?
Estes dois livros, de formas diversas, têm a característica comum de serem parte da cultura ocidental e questionarem a ética e a moral da guerra e da paz, permitindo uma reflexão oportuna sobre o devir, o pós-guerra.
Igualmente, nos colocam perante a dúvida: seremos capazes de construir uma nova ordem assente na paz e numa utopia de governação global ou enveredaremos pelo caminho da competição entre estados ou blocos regionais? Na verdade, não me parece existir uma resposta única, concisa e assente ora no pragmatismo de um modo de fazer política assente no realismo ou, pelo contrário, na utopia.
O mais certo é uma eventual reflexão resultar em ajustes e procura de equilíbrio entre a competição entre estados e blocos, que dificilmente desaparecerá, e uma ideia de paz e de respeito pela diversidade.
Que a hegemonia entre poderes sofrerá as dores da transformação na primeira metade deste nosso século, que agora desponta com todo o seu vigor, é certo. O resultado desta turbulência é incerto, mas trará para a cena internacional atores que nos parecerão agigantar-se e outros que, suave e persistentemente, terão de negociar o seu novo posicionamento na Ordem Internacional.