Passaram mais de dois meses sobre a realização das últimas eleições legislativas em Itália e, finalmente, o país apresta-se a ter um governo novo, sustentado maioritariamente pelo Parlamento de Roma.
Não se trata de um país qualquer – é uma das maiores economias da União Europeia e, por maioria de razão, da zona euro, onde ocupa o terceiro lugar no ranking das maiores economias da moeda única; um dos maiores Estados da União; um Estado fundador das Comunidades Europeias e do projeto comum europeu; mas, simultaneamente, uma das potenciais bombas-relógio que neste momento afetam a UE, devido a toda a sua complexa contingência económico-financeira e à gravíssima crise das finanças públicas que atravessa.
O governo que se anuncia baseia-se no entendimento estabelecido entre o líder do partido anti-sistema Movimento 5 Estrelas, Luigi di Maio – sucessor do mítico Beppe Grillo à frente da formação – e Matteo Salvini, o líder da Liga – a anterior Liga Norte – de matriz populista de extrema-direita. Ambos assinaram um improvável acordo de governo que, apesar de deixar em branco o nome do futuro chefe do governo, está a deixar quer as autoridades e instituições de Bruxelas, quer os restantes governos europeus com os cabelos em pé e com mais do que um pé-atrás.
Não tanto pela imprevisibilidade da sua celebração, mas essencialmente pelo seu conteúdo e por algumas das medidas que se propõe adotar. Medidas essas que, segundo se sabe, resultaram essencialmente das contribuições programáticas e ideológicas da Liga, muito mais sólido doutrinariamente e muito mais denso e consistente no plano dos princípios do que o seu futuro parceiro de governo do M5S.
Entre essas medidas, contam-se a prevista expulsão de mais de 500.000 refugiados e imigrantes ilegais concentrados em diversos locais de Itália; o censo de todos os imãs que pregam o Corão no país; a revisão das regras de governação económica europeias, aí se incluindo as normas que regulam a moeda única europeia; a introdução um sistema nacional de títulos de dívida de curto prazo que podem ser comercializados à margem dos instrumentos de dívida permitidos pelo Banco Central Europeu – como alguém já sublinhou, na prática trata-se de implementar um plano disfarçado para fazer circular uma moeda paralela ao euro.
Como será fácil de perceber, a enunciação destas medidas – e de outras que constam do projeto de acordo entre o M5S e a Liga – foi suficiente para fazer soar todos os alarmes e todas as campainhas em Bruxelas e nas mais importantes chancelarias europeias. A sua aplicação poderá, inquestionavelmente, criar dificuldades à atuação das instituições europeias e, sobretudo, ao aprofundamento da união económica e monetária, no momento em que esta aparece como um dos principais desideratos da generalidade dos projetos que se encontram em cima da mesa em matéria de desenvolvimento e aprofundamento da União Europeia.
Alguém relembrava, com razão, que esta desconfiança no sistema monetário europeu surge a menos de um mês da próxima cimeira do Conselho Europeu, no qual Angela Merkel e Emmanuel Macron se comprometeram a apresentar, finalmente, uma proposta para a reforma da União Económica e Monetária, já de si muito difícil de negociar. Com esta postura, o novo governo italiano apresta-se a dotar a chanceler alemã com um inesperado acervo de argumentos para travar a já revelada ambição do presidente francês nesta matéria.
Parece inegável que, a aplicação de algumas destas medidas numa das maiores economias da zona euro arrastará consigo, fatalmente, a moeda única europeia para uma nova e imprevisível crise. Que se pode perspetivar como vai começar; que é de todo impossível de adivinhar como terminará. Isto numa altura em que as sequelas da última grande crise das dívidas soberanas ainda não se encontra totalmente superada e os seus resultados e consequências ainda não se podem ter por completamente absorvidos pelas economias europeias por ela afetadas.
Independentemente do desfecho que este processo político venha a conhecer, e do governo que se vier a formar em Roma, um último dado de relevo deve merecer a nossa atenção e reflexão – pela primeira vez na história da UE, um dos seus principais Estados, uma das suas mais importantes economias, apresta-se a ser governada, direta ou menos diretamente, por influência dos populismos antissistémicos e assumidamente antieuropeus.
Pensar que é apenas o projeto europeu que estará em crise será, manifestamente, redutor e insuficiente. É mais do que isso e é mais grave do que isso: será a essência da própria democracia liberal, tal qual a conhecemos e a aprendemos e que tem vindo a governar a Europa sobretudo no último pós-guerra, que pode estar em causa.