Quando Jean Bodin primeiramente baptiza o conceito de soberania, ainda no século XVI, estabelece numa expressão aquilo que, ao longo dos séculos, outros filósofos foram abordando aqui e ali. Se o conhecimento, mesmo o filosófico e, portanto, não científico, é cumulativo, aquela ideia não seria absolutamente original. Claro que se viviam tempos específicos, sobretudo numa luta entre o calvinismo e o catolicismo, e haveria, talvez, não sou eu quem o diz, uma necessidade de centralização socio-estatal, ainda não conseguida anteriormente. Não me alongo nesta parte, servindo-me apensas destas breves referências para sublinhar que o contexto não é tudo mas é muito. Às vezes custa-nos separar aquilo que chamamos “a espuma dos dias” daquilo que é estrutural nas sociedades, e mais ainda nos mecanismos de comportamento dos actores políticos, misturamos tudo. Que procuremos não o fazer porque, ainda assim, o contexto é importante.
Mas voltemos à ideia de soberania, poderíamos atalhar caminho para as noções de Estado-Nação, ou até de República, mas fiquemo-nos com um exemplo. A ideia de que um Estado mais centralizado resolveria a praxis existente em sociedades divididas e extremamente segmentadas e, portanto, de “pseudo-Estados” (perdoem-me a imprecisão), parecia uma proposta para se alcançar a paz nas comunidades, passando, claro está, pelas pessoas (os cidadãos). A soberania bodiniana era a materialização de um Laço Natural e da Lei Divina, acima de qualquer outra Lei Humana. Mas, este “salto” de raciocínio tem muito que se lhe diga daí que eu me abstenha de o aprofundar. Ainda assim, não nos esquecemos da sua importância bem visível nas semanas que passaram recentemente, a simbologia espiritual a perpassar o dia a dia de nós todos com a morte da Rainha Isabel II e os respectivos ritos. A fundamentação da soberania (interna e externa) tem levado a interpretações várias ao longo dos séculos, serviu de Paz mas, igualmente, serviu a Guerra, e apesar dos contextos terem mudado, há sempre serventia para a voltar a manusear.
Sabemos também que a democracia grega “original” e a Democracia enquanto conceito primeiro, estão muito distantes daquilo que nomeamos como democracias nos dias de hoje, ainda assim utilizamos esta denominação. Servimo-nos do ideário de soberania falando de algo idêntico que ocorre em tempos distintos, ainda que saibamos da necessária adaptação mental: simplesmente porque muito mudou ao longo dos séculos. O mundo é mesmo feito de mudança, como sabemos e reconhecemos na lírica camoniana, e chega a ser estranho que alguns se esqueçam disso.
Hoje em dia, e por exemplo, os movimentos de cariz fascista e extremado, sofrendo de um conservadorismo patológico que se nos afunila a visão, porque com medo da inevitável mudança, levam-nos a confundir “alhos com bugalhos”. Em nome de uma estabilidade podre, intentam fazer-nos esquecer que entre os conceitos e a realidade a distância às vezes é curta mas decisiva, e que procurar reinventar a realidade é como resistir a um tsunami, não se consegue, mesmo que nos mantenhamos a uma distância de segurança.