As cativações orçamentais são o tema quente das finanças públicas. A cativação de verbas corresponde à reserva de montantes de despesa previstos no Orçamento do Estado (OE), que apenas são executados sob autorização do ministro das Finanças (MF). Quando surgiram no final dos anos 1980, estavam associados aos deveres da boa administração. Era um instrumento de gestão flexível que permitia ao governo uma “rigorosa contenção de despesa” (como dizia a lei).
Em 1988 e em 2003, o Tribunal Constitucional teve oportunidade de esclarecer que as cativações na sua versão original (mais circunscrita) não violavam a Constituição, com o argumento de que “a aprovação do Orçamento de Estado não implica necessariamente que os serviços tenham sempre de utilizar os créditos abertos até ao esgotamento”.
Com a crise de 2011-2014 as cativações sofreram uma expansão, tornando-se mais complexas e gravosas. Deixaram de corresponder a verbas reservadas, em parcelas orçamentais facilmente identificáveis, para se tornarem num instrumento de controlo generalizado do orçamento e do funcionamento do Estado por parte do MF.
Esta evolução colide com o que dispõe a Constituição, que tece um esquema orçamental muito simples (e não pode ser alterado por lei): o Parlamento toma as decisões financeiras (decide as despesas e calibra os impostos em função dos gastos) e o Governo executa. Ao assumir poder decisório, por via das cativações, o MF é investido de um poder que não tem suporte constitucional, assumindo a cada momento a decisão das prioridades do Estado.
Isto viola o princípio do consentimento parlamentar, que constitui ainda hoje uma das bases da democracia. Reduz ainda paulatinamente o OE a uma formalidade e os seus mapas a um conjunto de previsões fictícias.
A consequência desta subversão de poder é visível. A assunção de poderes pelo MF perverte a lógica de descentralização de funcionamento da Administração Pública. Quando o MF assume poderes decisórios, a Administração deixa de saber ao certo com o que conta, gerando incerteza. E pior: colide com o estatuto de independência e autonomia de alguns serviços, pondo em causa o seu regular funcionamento.
A execução orçamental deixa de refletir o esquema de independência e autonomia tal como prescrito pelo direito financeiro, e passa a estar ao serviço de um poder centralizador, colocando toda a Administração numa posição em que os serviços têm de justificar perante o MF o cumprimento das suas atribuições e o dispêndio de verbas orçamentadas.
Isto não é uma inevitabilidade. Ainda é tempo de se fazer um pedido de fiscalização de constitucionalidade do OE e do Decreto-Lei de Execução Orçamental, que ainda por cima agrava as cativações orçamentais, denunciando claramente que não foi feito por um poder meramente executivo.
Não basta que os agentes políticos se queixem das cativações, mas aceitem, ano após ano, uma primazia crescente do MF. É preciso que se assuma o sistema de freios e contrapesos previsto na Constituição, impedindo que o Parlamento se torne irrelevante.