Num período de elevadas surpresas de inflação o défice deixa de ser um bom indicador do grau de restrição da política orçamental, sendo necessário avaliar também o que se está a passar com a dívida pública. Como a inflação de 2022 está a ser muito diferente do que se esperava, será também necessário avaliar os orçamentos deste ano e o de 2023 em conjunto, já que se poderia corrigir parte do inesperado no orçamento seguinte.
Assim, se olharmos para a evolução esperada da dívida pública entre 2021 e 2023, vemos uma queda de 16,1% do PIB (de 125,5% para 110,8% do PIB). Comparando com o período de 2016 a 2019, em que houve uma redução média daquele rácio em 5% do PIB por ano, verificamos que a redução é agora claramente superior (cerca de 8% do PIB por ano), embora a conjuntura seja mais difícil. Se olharmos para Espanha, verificamos que o esforço de redução entre aqueles anos é muito inferior (6,4% do PIB, de 118,6% para 112,1% do PIB, segundo o FMI). Ou seja, quer comparemos com o passado recente deste governo, quer com os nossos vizinhos, verificamos que há mais austeridade.
Usando como referência a neutralidade em percentagem do PIB, verificamos que as prestações sociais vão reduzir-se em 2500 milhões de euros (-6%) no próximo ano, uma queda exagerada pelo facto de ter havido uma antecipação de meia pensão este ano. As despesas com pessoal vão cair 8%, uma queda muito forte em termos reais, correspondente a mais de um mês de perda de ordenado.
De acordo com o Conselho de Finanças Públicas, a inflação acumulada de 2022 e 2023 deverá ser da ordem os 13%, mas as tabelas de IRS só deverão ser actualizadas em 6% nesse período, traduzindo-se, também aqui, numa perda de poder de compra das famílias, já penalizadas por aumentos salariais abaixo da inflação. Deve-se acrescentar que esta perda salarial seria inevitável porque a subida dos preços da energia empobrece um país muito dependente das importações de combustíveis, como é Portugal.
Só a inflação elevada permite quedas tão grandes nos valores referidos, o que mostra que é a inflação que está a permitir a actual austeridade.
Pode-se dizer que o PS beneficia do conhecido efeito político “Nixon vai à China”, que se refere ao facto de ter sido mais fácil a um presidente conservador dos EUA ir àquele país asiático, sem ser acusado de qualquer tipo de simpatias comunistas. Assim, também os socialistas portugueses têm podido aplicar esta austeridade, que não seria aceite sem os maiores protestos se fosse a direita a fazê-lo.
Esta era a única via possível? É evidente que não, basta comparar com o caso espanhol. Discordo da intensidade do aperto orçamental escolhido? Não propriamente, embora tenha grandes divergências em relação à sua composição. O que não se pode aceitar é a falta de transparência das escolhas governamentais. Trata-se de uma nova contradição de querer convergir com a UE e usar estratagemas terceiro-mundistas de ocultação do que o governo está empenhadamente a fazer.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.