Já aqui discutimos as ‘stablecoin’ e porque não são tão disruptivas quanto as criptomoedas voláteis. Dado o que se passou há uns meses com a ‘terra’, uma ‘stablecoin’ que praticamente desapareceu da noite para o dia, e considerando as intensas discussões que se seguiram sobre os vários tipos de ‘stablecoin’, este ensaio discute o seu significado como massa monetária. É que a massa monetária é um assunto muito sério, pois, para além de ser veículo de liquidez, também serve para medir o valor dos activos da economia que suporta, e até como investimento.
Também já aqui se discutiu a utilidade das criptomoedas nos seus ecossistemas e porque vieram para ficar. Apesar das criptomoedas darem corpo exclusivamente aos ecossistemas da economia não-regulada, a maioria das economias já as reconhece como reserva de valor (excepto alguns exemplos notáveis, como a China), e só quando esses ecossistemas forem aceites pela lei e pela regulação é que vão poder criar valor potencialmente em qualquer tipo de actividade económica.
As criptomoedas voláteis têm incluído uma componente muito significativa de especulação (algumas são mesmo especulação pura), o que até pode ser bom para quem acreditar no “eldorado dos criptobilionários relâmpago”, mas talvez não seja a melhor forma de dar corpo a economias saudáveis. Pois é aqui que entram as ‘stablecoin’. Com um valor supostamente constante, este tipo de criptomoedas apareceu precisamente para reduzir a volatilidade ao mínimo possível. A questão é: valor constante em relação a quê, pois até as massas monetárias tradicionais estão sujeitas a arbitragem. O desafio é grande, dada a necessidade de definir as regras que estabilizam o valor da massa monetária, e são quatro as soluções hoje disponíveis.
As duas classes de ‘stablecoin’ na economia incumbente
A primeira classe passa por ancorar a ‘stablecoin’ a activos da economia incumbente. Tanto pode ser uma moeda fiduciária, tal como Euro ou USD, como um cabaz de activos com liquidez. Por exemplo, ao comprar USDC da Circle, a qual tem USD como colateral, será que esta ‘stablecoin’ pode ser resgatada mesmo que a Circle se torne insolvente? Devia ser essa a ideia, apesar de haver dúvidas.
Com este tipo de ‘stablecoin’, estamos, portanto, a programar os activos colateralizados (i.e., servem de garantia) da economia incumbente na Blockchain da ‘stablecoin’ em causa. Aliás, um excelente e honesto exemplo dessa programação é a PublicMint, já aqui discutida. Consequentemente, a segurança do valor destas ‘stablecoin’ está indexada às economias detentoras do cabaz dos activos colateralizados. A sua programação em Smartcontract permite-lhes suportar as transferências de valor subjacentes à auto-execução, sendo as CBDC (Central Bank Digital Currency) um bom exemplo disso.
Aliás, quando o Euro Digital vir a luz do dia, mais do que um simples meio de pagamento para substituir, por exemplo, os cartões de débito ou o MBWay, esta CBDC pode estar perfeitamente na origem de transferências de propriedade auto-executáveis. É que, no mundo que aí vem, comprar uma fracção de um imóvel para investimento pode ser tão conveniente quanto ler um QRCode. Em suma, a massa monetária deste primeiro tipo de ‘stablecoin’ faz parte da economia incumbente detentora dos activos colateralizados, onde a segurança do investimento também depende da entidade responsável pela sua custódia.
Por exemplo, os vales de desconto, ou os pontos de uma qualquer campanha de marketing, já são hoje uma forma de emitir dinheiro electrónico. O conceito é simples. Os descontos são emitidos adicionando à massa monetária e são destruídos quando resgatados. Aliás, a lei não impede hoje a emissão de moeda deste tipo, tal como as locais e outras moedas complementares. Portanto, também nada impede a substituição deste tipo de dinheiro electrónico por ‘stablecoin’, com a vantagem de se poder tokenizar as transacções, e a conveniência proveniente da auto-execução respectiva. Neste caso, o único entrave legal actual será a necessidade de uma licença de pagamentos, o que colocaria, aliás, em causa toda a infra-estrutura dos fornecedores, incluindo a SIBS com o fantástico MBWay.
A segunda classe de ‘stablecoin’ na economia incumbente passa por uma colateralização com um cabaz de criptoactivos de valor total superior, e sempre através de uma entidade guardiã responsável (custodian), e tal já é legalmente possível nas economias que reconhecem os criptoactivos como reserva de valor. O valor unitário destas ‘stablecoin’ será sempre o de uma qualquer moeda fiduciária (ou cabaz delas) e o seu risco virá da segurança quanto à volatilidade dos criptoactivos subjacentes e da honestidade da entidade responsável.
Resta dizer que estes dois primeiros tipos de ‘stablecoin’ serão regulamentados pelo MiCA na UE, já aqui discutido, passando assim a fazer rigorosamente parte da nossa economia e a sua liquidez deverá evoluir com a lei.
As outras duas classes de ‘stablecoin’ são DeFi
As outras ‘stablecoin’ estão separadas das economias incumbentes, e são consideradas DeFi por serem totalmente auto-executáveis sem nenhuma pessoa jurídica responsável e imputável. São (i) as colateralizadas por outros criptoactivos e (ii) as puramente algorítmicas (sem colaterais). Naturalmente, as primeiras só serão DeFi quando executadas por uma DAO (Distributed Autonomous Organization), senão a responsabilidade pela respectiva cripto-massa-monetária seria centralizada, caindo assim na classificação anterior.
O significado de massa monetária na DeFi
Mesmo nos actuais universos paralelos das economias não-reguladas, é normal medirmos valor na unidade de conta de uma moeda local. Será que isso significa que também pertencem à massa monetária dessa economia?
Em boa verdade, as próprias criptomoedas voláteis poderiam ser transformadas em ‘stablecoin’ se a sua emissão fosse controlada com a estabilidade como objectivo, acompanhando assim a oferta e a procura, tal como acontece nas economias saudáveis com as moedas fiduciárias. Por exemplo, a Bitcoin tem sido muito volátil porque (i) a sua oferta, ou seja, a emissão desta criptomoeda, provém exclusivamente da mineração, e tem valor constante por períodos de 4 anos (actualmente nos 6,25 Bitcoin a cada 10 minutos), enquanto (ii) a sua procura sofre as oscilações provenientes da crença dos investidores quanto à reserva de valor e crescimento de utilidade futura.
Assim, se a oferta da criptomoeda acompanhasse a procura, o valor da unidade monetária poderia ser mantido constante, eliminando as variações com origens especulativas. É que uma coisa é emitir moeda para pagar a utilidade da mineração, e outra é vender moeda só porque sim (nota: a mineração é um termo enganador, pois os famosos mineiros mais não fazem do que gerir todos os meios técnicos para o funcionamento da Blockchain pública). Não fará portanto sentido transaccionar criptomoeda sem utilidade real (como já aqui se discutiu). Felizmente, a estabilidade das ‘stablecoin’ elimina practicamente toda a especulação, estando assim o seu valor sustentado em utilidade pura. Convém, portanto, compreender como medir esse valor e se faz parte de uma cripto-massa-monetária autónoma.
Vamos então começar por considerar um cenário na economia não-regulada cujos bens e serviços são transaccionados em criptomoeda tradicional (i.e., volátil). Se a cripto-massa-monetária em circulação for constante, e se a economia aquecer com mais necessidade de moeda para as transacções, haverá tendências deflacionistas, ou seja, cada unidade de conta terá de representar mais valor. Significa que quem detiver a criptomoeda não vai querer gastá-la, pois esta valorizará naturalmente no tempo.
É, aliás, por isso que as economias não gostam da deflação, pois é contrária ao investimento que cria crescimento económico. Nesse caso, a solução é emitir mais moeda. Porém, a emissão indiscriminada de moeda é um problema, pois cria inflação, a qual se traduz em representar a mesma quantidade de activos e transacções por mais massa monetária. Também não é bom, pois reduz o valor das reservas monetárias no tempo. Nas criptomoedas, as ‘stablecoin’ podem ser uma solução. Mas quem emite essa moeda? E com que critérios?
As ‘stablecoin’ colateralizadas numa DAO
O conceito de ‘stablecoin’, quando colateralizado numa DAO por outros criptoactivos, é muito semelhante à colateralização com custódia, sendo apenas diferente no que toca às regras de governação e no facto de não haver nenhuma pessoa jurídica responsável. Estas ‘stablecoin’ são uma forma de programar as transferências de valor na DeFi e representam uma reserva de valor de alguma forma imune à volatilidade das criptomoedas tradicionais.
São uma espécie de espelho de massas monetárias fiduciárias na DeFi, tal como se passa a explicar.
Esta classe de ‘stablecoin’ é colateralizada num cabaz de criptoactivos e a sua unidade de conta é frequentemente a de uma moeda fiduciária, EUR ou USD por exemplo, por ser mais conveniente medir valor da forma que melhor reflecte o nosso dia a dia. Como o cabaz em causa tem um valor reconhecido e espelhado na economia incumbente (e.g., através do MiCA), e que é, aliás, muito superior à massa monetária das ‘stablecoin’ que está a garantir, estará praticamente imune à volatilidade dos criptoactivos que o constitui. Uma vez que a medida de valor é proveniente da economia incumbente, é a volatilidade dessa medida que fica espelhada no valor económico da ‘stablecoin’, e isto funciona desde que a colateralização na DAO seja suficiente e sirva apenas para dar corpo às transferências de valor programadas em Smartcontract na DeFi, comportando-se, portanto, como uma extensão da massa monetária fiduciária. QED.
As ‘stablecoin’ sem colateralização
Mais interessante é analisar se as ‘stablecoin’ algorítmicas podem ser cripto-massa-monetária, tal como as criptomoedas tradicionais. É que enquanto estas últimas têm toda a liberdade para ser emitidas de acordo com as intenções dos seus criadores, sofrendo da volatilidade resultante do equilíbrio entre a oferta e a procura como já explicado acima com a Bitcoin, as ‘stablecoin’ mantêm uma valorização estável. Isso significa que têm de ser programadas para que a oferta da cripto-massa-monetária acompanhe a procura em tempo real, procura essa que já só pode estar assente em utilidade pura e sem qualquer especulação. Mas então como emitir tal moeda?
Neste caso, a emissão pode começar por remunerar também a mineração (se esta existir). Mas como acompanhar o crescimento económico reflectido no aumento de procura de moeda? E quem usufrui desse incremento de riqueza espontâneo? É que esta emissão está para lá do custo do desenvolvimento, inovação e até da exploração de uma qualquer solução tecnológica (nota: um ICO pretende precisamente pagar estes custos).
Avanço, portanto, com uma hipótese (tanto quanto sei) em primeira mão: distribuir a emissão destas ‘stablecoin’ proporcionalmente aos detentores das mesmas em qualquer momento. Na verdade, não é muito diferente do que já acontece hoje com as criptomoedas voláteis, pois quem as detém usufrui da tal variação espontânea de riqueza em função da procura. Mas no caso de uma ‘stablecoin’, como a procura tem origem exclusivamente na sua utilidade real, são os detentores das ‘stablecoin’ em circulação a usufruir do aquecimento da economia. Desta forma, para além de eliminarmos a especulação de vez, a oferta de ‘stablecoin’ acompanha naturalmente a procura e os benefícios vão democraticamente para quem investiu na mesma. Será que é desta?
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.