Começo por pedir desculpa a John Steinbeck pelo plágio espelhado no título deste artigo com inspiração no seu último e fabuloso livro, galardoado com o prémio Nobel em 1962. Foi irresistível, pois o cripto-inverno que temos estado a viver este ano tem as mesmas raízes sociais da trama idealizada pelo autor.
Já não é a primeira vez que vivemos um cripto-inverno. Quando a China anunciou, em 2014, a proibição das criptomoedas na sua geografia, a bitcoin foi caindo até um décimo do seu valor nos meses seguintes. Já no início de 2018, a venda abrupta da bitcoin como resultado de uma suspeita de fraude, criou o pânico, e reduziu em poucos meses o valor da generalidade das criptomoedas em cerca de 80%. E em 2022 têm sido umas atrás das outras. Tudo começou em Maio com a volatilização do binómio de criptomoedas Terra-Luna, cujo pânico levou atrás as outras criptomoedas e que teve como consequência a falência de várias empresas.
Mais recentemente, a falência fraudulenta do Exchange FTX, e a volatilização subsequente de criptoactivos à sua guarda no valor equivalente a milhares de milhões de dólares, tem provocado uma autêntica hecatombe na confiança dos investidores. Há até quem fale em cripto-idade-do-gelo, numa perspectiva de um cripto-inverno particularmente rigoroso e prolongado. Haverá esperança?
É a regulação que separa a #DeFi da #CeFi
É importante ter presente que toda esta diminuição de reservas de valor em criptomoeda tem tido lugar no mundo #DeFi, já aqui discutido, e completamente à margem da economia regulada. É que, apesar dos serviços da #DeFi se assemelharem a serviços financeiros, não o são de facto, pois, na nossa democracia, estes têm de ser devidamente legislados e licenciados. Até nos dois países onde a Bitcoin passou a ser aceite pelos reguladores, tal só foi possível depois de publicada a devida legislação.
Assim, os investidores na #DeFi devem estar conscientes de que não estão protegidos pela lei, e que todas as suas as transacções são realizadas por sua própria conta e risco. Na #DeFi, tanto pode acontecer passarmos a fazer parte do Eldorado dos cripto-bilionários relâmpago, como podemos ver todas as nossas reservas evaporar-se sem deixar rasto e sem podermos fazer nada contra isso. Convém, portanto, ter consciência do risco dos investimentos na #DeFi, o qual é medido pelos níveis de volatilidade com alto grau de dispersão, i.e., com subidas acentuadas e quedas abruptas de valor.
Mas nada impede que o valor dos criptoactivos possa também pertencer ao mundo mais tradicional das finanças centralizadas, de nome #CeFi (em inglês, Centralized Finance), e cujos serviços são oferecidos por uma entidade licenciada pelos supervisores da economia incumbente. Neste caso, o direito de propriedade das reservas de valor na #DeFi é gerido por entidades licenciadas na #CeFi, como é o caso dos Exchanges (e.g., a Binance ou o Bison Bank). De notar, aliás, que os criptoactivos já foram, há anos, reconhecidos e aceites pela lei como reserva de valor em quase todos os espaços geopolíticos (com notáveis excepções tal como a China).
Em suma, o ecossistema que dá valor aos criptoactivos na #DeFi é diferente do ecossistema que os gere, e este último pode ter lugar tanto #DeFi como na #CeFi, dependendo se está, ou não, sob regulação.
Criação de valor económico, especulação ou fraude?
Já aqui discutimos a valorização das criptomoedas no seu ecossistema. Quando não há lugar a criação de valor económico, a sua valorização só pode ter origem na especulação. Nesse caso, têm de ser os investimentos dos novos clientes a remunerar os dos clientes já existentes, e é a isso que se chama um esquema de Ponzi. A devida retribuição pelo serviço prestado (no máximo 2%) nunca estará ao nível do retorno esperado pelos investimentos dos clientes, sobretudo quando os níveis de volatilidade são altos (onde 20% é relativamente normal).
Portanto, o esclarecimento do investidor é a sua melhor protecção, pois se os seus investimentos não passarem de especulação, não se admirem de encontrar um cripto-cemitério no lugar do tal Eldorado. Para além disso, é necessário saber lidar com a fraude, o que é muito mais difícil quando não se está protegido pela lei (e mesmo quando se está, tem dias).
As fragilidades na gestão dos criptoactivos
Na #DeFi, todos os serviços são não-centralizados, e a sua gestão está programada na auto-execução dos Smart Contracts. Neste mundo não-regulado, as decisões sobre alterações à política de gestão são tomadas ao abrigo de uma DAO (i.e., organização autónoma e distribuída). É mais seguro, simplesmente por ninguém em particular pode defraudar o sistema, pois uma DAO elimina, por definição, o elemento humano individual.
Não obstante, as DAO também têm fragilidades porque (i) a programação dos Smart Contracts pode ter erros, (ii) os Smart Contracts das DAO são atacáveis pelo cibercrime, e, até agora, (iii) o consenso nas DAO tem sido controlado na prática por um número ínfimo de participantes, abaixo de 1%. Estamos, portanto, ainda longe de encontrar uma solução totalmente segura e protegida contra os patifes na #DeFi, e é também por isso que muitos investidores recorrem à #CeFi para gerir os seus criptoactivos.
Quando a #CeFi é bem gerida, os criptoactivos dos clientes estão devidamente salvaguardados em cofres digitais, seguros, e inacessíveis através da Internet, precisamente para que os cibercriminosos não lhes possam deitar a mão, passando assim a ser uma questão de confiança nesses guardiões. E é precisamente aqui que reside o problema, pois essa confiança tem vindo a ser traída. A este respeito, o caso do recentemente falido Exchange FTX é um exemplo particularmente significativo e interessante.
A fraude tem sido demasiado tentadora na #CeFi?
As entidades que detêm os activos dos seus clientes são supostas cumprir as suas promessas. No mundo regulado, a supervisão verifica-o tanto quanto possível, e mesmo assim há surpresas, tal como aconteceu com escândalos como o do BES em 2014. Ora, sendo os criptoactivos reservas de valor devidamente reconhecidas por lei, se a gestão das entidades centralizadas que as detêm também estiver devidamente licenciada, não deve haver razão para que o nível de confiança seja mais baixo que o habitual.
Ora, é precisamente por isso o colapso do segundo maior Exchange do mundo (FTX) é elucidativo. Apesar de esta empresa possuir a devida licença, não foi, todavia, supervisionada como devia (talvez por ter como base o estado das Bahamas), pelo que utilizou indevidamente os recursos dos seus clientes com os resultados desastrosos que estão à vista. Afinal, se o negócio de câmbio já era suficientemente rentável e sem risco, o que terá levado os seus gestores a optar pela fraude?
As garantias verbais dadas pela FTX aos seus clientes nunca criaram a mínima suspeita do que estava realmente a acontecer, mas, tal como Ethan na novela de Steinbeck, terá sido impossível aos gestores da FTX resistir à pressão social para enriquecer à custa de tudo e de todos, tornando assim este cripto-inverno inelutável desde logo, e por isso o do nosso descontentamento.
Além disso, enquanto uma DAO na #DeFi apenas requer recursos informáticos para funcionar, os quais têm custos marginais extremamente baixos, já na #CeFi uma entidade centralizada precisa de pagar salários. E quem vai suportar todos esses custos reais? Há que garantir que os criptoactivos depositados pelos clientes são intocáveis e que os custos são pagos exclusivamente pela receita proveniente da prestação de serviços. Mas quantas vezes podemos ter essa certeza? Portanto, na #CeFi, é obrigatória uma supervisão honesta e eficaz à gestão dos criptoactivos, o que visivelmente não era o caso da FTX. E é, aliás, esse o objectivo do MiCA para entidades #CeFi na UE.
Não deixa, no entanto, de ser curioso saber que o conjunto de fraudes perpetradas por esta empresa não teria sido possível se este Exchange fosse não-centralizado (i.e., operado por uma DAO na #DeFi), pois, tal como já referi, a #DeFi tem fragilidades, mas não este tipo de exposição à fraude.
De John Steinbeck a William Shakespeare
“O inverno do nosso descontentamento” é uma alusão de Steinbeck à primeira frase da peça Ricardo III de Shakespeare. O que em Steinbeck é apenas desilusão e sofrimento, em Shakespeare é uma referência de Ricardo III ao desencanto do passado transformado “num verão glorioso” pela mão do seu irmão, Eduardo IV. Será que há esperança para o nosso cripto-inverno?
A parte de leão dos activos que cria valor na nossa sociedade pertence à economia regulada porque a democracia assim o tem exigido (e o mesmo se tem passado também nos países com outros regimes políticos). Ora, o calcanhar de Aquiles da #DeFi tem sido, precisamente, a impossibilidade de englobar esses activos para a criação de valor económico. Felizmente, tal como já aqui referi, há direitos que já podem ser tokenizados na economia regulada, como é o caso das acções e obrigações com a aplicação para breve do regulamento Pilot DLT em toda a UE.
Este é apenas o primeiro passo da revolução que se vai estender a todos os activos financeiros, abrindo assim o caminho à livre tokenização dos direitos pelo resto dos sectores da economia regulada, incluindo todos os seus activos. E é assim que, no “verão glorioso” da 4ª revolução industrial, a auto-execução ecossistémica nos mercados secundários de todo o tipo de direitos passará a fazer parte do nosso dia a dia, pelo que só voltaremos a ser “desencantados” com cripto-invernos se quisermos.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.