Eis uma pergunta que frequentemente nos colocamos: para que serve isto? Tal atitude não é de estranhar, já que uma das tendências do mundo moderno é a predominância de uma racionalidade de tipo instrumental. No entanto, nem tudo tem uma utilidade evidente ou imediata, e não é por isso que se terá necessariamente de questionar o seu valor ou o seu direito à existência.
Serve este introito para trazer de novo à colação o debate sobre o estatuto e valor das Humanidades. O espectro que paira sobre a sua alegada irrelevância é talvez tão antigo quanto a afirmação antagónica do seu valor intrínseco. Encontramos um exemplo privilegiado desta defesa no “Protréptico” de Aristóteles, a sua exortação à filosofia, quando defende a superioridade do pensamento e da contemplação como bens independentes, que desejamos por si mesmos, e não para obter qualquer outra coisa.
Para lá da lógica do mercado
A partir da segunda metade do século passado a Universidade em geral transformou-se radicalmente, deixando progressivamente de ser uma instituição estritamente elitista para se dirigir para uma educação mais massificada, a qual teve como resultado positivo a democratização no acesso. Contudo, esta dinâmica, associada à crescente expansão da esfera do mercado teve também como consequência a mercantilização do ensino universitário, por vezes deplorada como “licealização das universidades” (Ordine) ou, no seu limite caricatural, “fábrica de diplomas” dentro do paradigma da clientelização dos alunos.
Por sua vez, a própria investigação académica, frequentemente tão dependente de financiamento público, encontra-se cada vez mais condicionada pela pressão de geração de impacto, muitas vezes direta ou indiretamente concebido como retorno de investimento, e que naturalmente tende a privilegiar a investigação aplicada, mais provável de gerar lucro. E é por isso com alguma naturalidade que se constata alguma preocupação de quem trabalha em áreas como as das Humanidades, cujo núcleo de sentido parece, pelo menos até certo ponto, ser contrário a estas dinâmicas.
Neste pano de fundo, é interessante assistir ao esboço de um movimento de resistência a este estado de coisas, e que passa pela imposição de limites à esfera mercantil (por exemplo com Michael Sandel em “O que o Dinheiro não Pode Comprar”), bem como, no contexto da orientação do ensino e investigação para o lucro e respetivas consequências para as Humanidades, incluindo fecho de cursos e cortes no financiamento, a defesa das virtudes intrínsecas das Humanidades e de uma educação e investigação livres de pressão para o lucro em autores como Nuccio Ordine (em “A Utilidade do Inútil”) ou Martha Nussbaum (em “Sem Fins Lucrativos: porque precisa a democracia das Humanidades”).
Pode, aliás, com as devidas distâncias, estabelecer-se um paralelismo entre este fenómeno e o movimento anti-utilitarista nas ciências sociais, e que tem uma tradição forte em França, exemplificada no coletivo M.A.U.S.S.. Nestes exemplos, a reflexão sobre os limites do produtivismo e do crescimento económico fazem-se explorando as lógicas da dádiva ou do desinteresse.
É claro que se o que estiver em causa nestas discussões for a adesão de estudantes a cursos de ensino superior, esse é um problema de procura e, num Estado liberal, as preferências não podem ser impostas. Se, por outro lado, se discutir o financiamento da investigação, tem de se ter em conta que as políticas públicas têm de ser sempre objeto de um debate democrático sobre prioridades. A quem deseje ver reforçado o papel das Humanidades na sociedade não chega, por isso, proclamar a importância da área ou reivindicar o peso da tradição. É preciso, pelo contrário, mostrar a sua especificidade para fazer compreender por que razão devem ser defendidas.
Interpretação
Importa perguntar, em primeiro lugar: haverá algo de comum às disciplinas que agrupamos sob a designação “Humanidades”? Serão elas algo mais que uma forma institucional (e contingente) de agrupar domínios diferentes do saber, como a Filosofia, os Estudos Clássicos, a História e as línguas, entre outros?
Por um lado, um olhar atento não poderá esconder a diversidade, por vezes inconciliável, dos pontos de vista e métodos não só entre as diferentes disciplinas como também dentro de cada uma delas. Porém, parece-me interessante a abordagem dos autores de linhagem hermenêutica que identificam a tarefa da interpretação como núcleo central das Humanidades, de que é exemplo recente o livro “What are the Humanities for?” de Willem B. Drees.
Com efeito, é apanágio das Humanidades, na sua tentativa de compreensão alargada de nós próprios, dos outros, e do mundo, a abertura para a pluralidade de interpretações. O que inclui o esforço de reconstituição histórica do passado para melhor se compreender o presente, mas também a tentativa de compreensão da nossa identidade pessoal e das identidades coletivas. Deste esforço faz igualmente parte o alargamento da nossa perspetiva através do acolhimento da alteridade, seja isso através da aprendizagem de línguas diferentes ou do cultivo da imaginação através da arte e da literatura.
Como sublinha Drees, as Humanidades têm um cunho autorreflexivo. Nelas, estudam-se as formas humanas de expressão na sua diversidade. Por isso é nelas tão importante a experiência subjetiva em primeira pessoa, a compreensão da maneira como se constitui o sentido e se formam os valores e as crenças das pessoas, bem como averiguar até que ponto essas crenças e os comportamentos se relacionam com um ideal de racionalidade.
É também possível argumentar que é vocação das Humanidades a formação da Humanidade, no sentido ético da expressão. Com efeito, e diferentemente da hiperespecialização técnica tão na moda hoje em dia, o ideal da formação humanística, na sua sensibilização para a diversidade humana, inclui implicitamente o apelo para um horizonte ético de hospitalidade. Compreender que não somos o umbigo do mundo e que nem sempre a ação tem de ser movida pelo autointeresse implica ultrapassar as limitações de um ponto de vista egoísta e fechado; e as Humanidades estão especialmente bem preparadas para fomentar esse tipo de atitude.
Importa ainda dizer que, na verdade, a ênfase no “humano” também não significa necessariamente uma postura especista ou tecnófoba. De facto, duas áreas em forte expansão hoje em dia são as humanidades ambientais e as humanidades digitais. E isso não é surpreendente já que cuidar do humano e cuidar do mundo são duas tarefas profundamente interrelacionadas. Assim, reconhecer o valor das Humanidades, respeitar a sua diferença específica, é também condição de possibilidade para uma interdisciplinaridade que faça sentido.
Crítica e transformação
É hoje um lugar-comum que a Universidade deve servir para incutir nos estudantes a competência do pensamento crítico. Por ordem crescente de especificidade, poder-se-ia dizer que essa tarefa caberia sobretudo às Humanidades e, dentro destas, à Filosofia, porventura às cadeiras mais relacionadas com a lógica e a argumentação. Pese embora o facto de este domínio parecer exigir uma competência filosófica, a verdade é que a virtude do pensamento crítico é por todo o lado vendida, até por o mercado a associar ao pensamento “fora da caixa” tão vital para a inovação.
Aqui poder-se-ia sublinhar que, na verdade, a inutilidade das Humanidades seria apenas aparente, até porque, ainda que, no seu âmago, não se definam por fins específicos de empregabilidade, acabam por tender a dotar os sujeitos desse tipo de “competências” que se podem vir a revelar “úteis”. E é claro que num tempo de fake news, bolhas sociais e dinâmicas de pensamento tribal, o pensamento crítico poderá ter uma utilidade fulcral para distinguir o trigo do joio em matéria de facto e de argumentação.
Este exercício da crítica tem uma componente formal e o seu principal objetivo é epistémico, visando a correção formal do pensamento e uma sã aquisição de conhecimento. Mas, como se pode ver pelo exemplo acima, a crítica tem também um domínio privilegiado de aplicação na realidade social.
Contra as acusações de enclausuramento das Humanidades (e mesmo da Universidade em geral) numa alegada torre de marfim, Robin Celikates, autor que se inscreve na tradição da Escola de Frankfurt, defende que o cunho autorreflexivo das Humanidades implica uma reflexão sobre os modos de produção do conhecimento, inclusive dentro das Humanidades.
Em concreto, tal significa a necessidade de questionar as opções de política do conhecimento, reformar práticas de ensino, ter atenção à diversidade dentro dos currículos e refletir sobre como evitar aquilo a que Miranda Fricker chama a “injustiça epistémica”. Esta injustiça afeta as pessoas na capacidade que têm para adquirir conhecimento. Acontece, por exemplo, em casos de “injustiça hermenêutica” (um tipo específico de injustiça epistémica), quando as pessoas não têm acesso aos recursos interpretativos necessários para reconstituírem o sentido das suas próprias experiências.
Como sugere Celikates, os defensores das Humanidades não podem dar por garantido aquilo que pretendem defender. Mas isto apenas significa que, apesar de nelas o peso da tradição ser preponderante, também as Humanidades (tal como, de maneira diferente, as ciências sociais e as naturais) têm no seu cerne processos de transformação. Aliás, a afirmação do elemento interpretativo que lhes é comum não significa que sejam corpos de saber imutáveis. Pelo contrário, ele impele a um processo contínuo de renovação. Acontece que, no caso das Humanidades, a transformação tende a ser escrutinada pela orientação ética e pela reflexão sobre o sentido global desse processo transformativo.
Assim, seja pelo cultivo das virtudes cívicas da democracia (como sustenta Nussbaum), pelo balizamento ético do progresso técnico ou pela reflexão sobre a transformação social justa, as Humanidades têm uma voz própria que, cada vez mais, se deve fazer ouvir.