O cenário atual global é descrito como uma “policrise” pelos organizadores de Davos [atenção cabeças falantes: não se diz “dávus” mas sim “dávôs”]: guerra na Europa, inflação, cortes de energia, refrega comercial entre a China e os EUA e talvez também com a Europa por causa do Inflation Reduction Act (IRA) de Biden.
Entretanto, no extremo sudoeste da Europa, nesse pequeno país onde o tempo não se conta em segundos mas em décadas ou até séculos, onde as mais simples decisões esbarram em birras pessoais e partidárias, a chamada elite política não sabe o que fazer para enfrentar os desafios internos e externos. A humildade não faz parte da natureza de possidentes, novos-ricos e pseudo-estadistas portugueses. Como escreveu Eduardo Lourenço sobre os portugueses, é tudo aparência.
Agora que regressei à escrita neste jornal, fui reler os artigos que escrevi ao longo de décadas. É desconcertante. Os mesmos problemas persistem. Na verdade, muitas coisas parecem estar ou estão pior. Os 60 mil que emigraram no ano passado são a medida objetiva da calamidade. O protesto dos professores que agora reclamam por um ensino que prepare as crianças para o mundo real e não apenas por salário digno tem enorme significado pois o progresso do país começa na educação com qualidade.
Estive na semana passada na cidade de Ghent, na Bélgica. Estava uma tempestade, chuva, frio e rajadas de 50 quilómetros/hora. Durante a semana a cidade estava deserta. Todos a trabalhar. No fim de semana, as ruas estavam cheias de gente. Os museus e os monumentos, mesmo os que são ao ar livre, como o misterioso castelo Gravensteen onde viveu a portuguesa Teresa, filha de Afonso Henriques casada com o Conde da Flandres, estavam cheios de gente, de crianças pequenas disciplinadas e interessadas. Se fosse em Portugal, o IPMA (para nos lembrar que existe) teria logo lançado um alerta vermelho e mandado toda a gente para casa.
Recordo com frequência os tempos em que decorreu a campanha eleitoral de 1985-86, do programa em que a “catch phrase” era “isto é que vai uma crise”, com Camilo Oliveira e Ivone Silva, senhora com quem tive o gosto de fazer uma série de programas para a RTP (“Querida Televisão”). Lembro o depoimento que recolhi de Agustina Bessa-Luís para a campanha de Freitas do Amaral: estamos numa emergência nacional, disse ela. E creio que estamos ainda pior que esse lugar indesejável, mesmo com uma maioria absoluta, coisa que (ainda) não havia naquele tempo, porque me parece que a esperança está a desvanecer.
Há seis anos escrevi que a desordem intelectual das elites democráticas resultante do impacto do populismo, da demagogia e da mentira da extrema-direita e da esquerda radical sobre eleitores confusos e receosos quanto ao seu futuro e dos seus filhos estava presente no Reino Unido post-referendo e em França post-atentados. Em Portugal, a desordem intelectual é mais antiga. As raízes radicam em características idiossincráticas e seculares de Portugal, que nenhum governo conseguiu ou quis enfrentar com palavras claras e decisões corajosas, e problemas alimentados por décadas de ilusão, sobre o potencial produtivo do país para sustentar o Estado social. De facto, o problema não é apenas a produtividade, que é baixa. O progresso só se consegue com sucessivo mais valor acrescentado científico, tecnológico, cultural, branding, marketing.
Esse artigo, cujo título era “Portugal precisa de ‘reset’ intelectual”, defendia que as idiossincrasias portuguesas não têm a ver com a predileção pelo bacalhau ou pelo vinho verde. Têm a ver com a superestrutura ideológica e a praxis social. Os seus efeitos refletem-se na enorme escassez de capital social (confiança entre as pessoas e destas nas instituições), uma das mais baixas da Europa; na incapacidade para resolver a perene falta de capital financeiro (público e privado); na deficiente e reduzida escala da educação formal (analfabetismo ainda não erradicado, falta de competências para gerir o Estado e empresas e para aumentar a produtividade); na demeritocracia que resulta em elites débeis (e imediatistas) e líderes apenas nominais nos mais diversos níveis; na ausência de um conceito genérico para o que é e o que poderá ser Portugal – um passado, presente e futuro compreendido e aceite pela maioria dos portugueses.
Os portugueses querem que os poderes criem condições (“uma ordem geradora de conhecimento” como escreveu Friderich Hayek) para o desenvolvimento de oportunidades para a aplicação de conhecimento, energia, criatividade individual e recursos privados em atividades produtivas e rentáveis (fiscalidade inteligente, não tributação de lucros nos primeiros anos de uma empresa, etc.), que adotem políticas sóbrias, transparentes, sérias, bem informadas, pragmáticas, inclusivas, através da cooperação, do compromisso e da solicitude entre Estado, empresas, instituições e cidadãos na sua atividade diária.
Seis anos depois desta escrita nada mudou. Continua a faltar tudo isto para que as crianças de Portugal acreditem em Portugal. Já não é uma emergência. É uma tragédia.
Mas há uma esperança. Como escreve o “Financial Times” (FT) de ontem, a humildade parece estar a dar sinais de que o Reino Unido está a voltar a ligar-se à realidade, e sabendo como os nossos costumes são tão influenciados pelos britânicos (lembram-se de Carnaby Street?), está na hora de copiar este novo estado de alma. O governo de Rishi Sunak abandonou a pretensão de que iria beneficiar de uma conversa sossegada com a administração americana para obter uma exceção ao IRA no âmbito da mirífica “relação especial” com os EUA e optou pela crítica que, todavia segundo o FT, não terá qualquer efeito.
Diz o jornal que, aparentemente, esta ilusão, herdeira do espírito imperial, está a desaparecer. Em Portugal há do mesmo em relação a uma putativa relação especial com as antigas colónias, com relevo para o Brasil. Também quanto ao Brexit, o “common sense” parece ter regressado ao Reino Unido, que está implicitamente a aceitar que é um parceiro comercial de segundo plano preparando as coisas para o regresso ao mercado único europeu.
Se os britânicos são capazes, então, rapazes e raparigas portugueses no Governo, no Estado, nas empresas, na educação, na cultura, na sociedade civil, não esperem pela mão divina da UE. O futuro de Portugal e da nossa democracia liberal está nas vossas mãos. Sigam a moda de Downing Street, sejam humildes, caiam na real, sejam europeus e atuem em conformidade, depressa e em força. Porque, como alguém escreveu no LinkedIn, os portugueses que emigram não querem apenas ganhar três ou quatro vezes mais. Querem um novo ecossistema.