Mais de metade da humanidade vive em cidades. Diz a ONU que serão dois terços em 2050. No mundo, há 30 megacidades com maior população que Portugal inteiro. A globalização é, pois, sobretudo de cidades, como partes que se conectam numa rede que cobre todo o planeta. Não surpreende que, por isso, nelas se concentrem problemas globais que é decisivo enfrentar: as alterações climáticas – as cidades são as maiores fontes de emissões de CO2 à escala global; e as desigualdades – que as cidades fixam e territorializam em centros poderosos mas despovoados e subúrbios sobrepovoados e pobres.

As cidades são vítima e espelho de um paradigma de desenvolvimento injusto e perigoso, assente na mobilidade e na mobilização de tudo e de todos. Cidades com periferias cada vez mais distantes, obrigando a pendularidades cada vez mais árduas, intensificam a mobilidade como um mandamento da existência contemporânea, aliás indissociável das ideias de flexibilidade, precariedade, curto prazo, descomprometimento,  cada indivíduo empreendimento de si próprio.

Tirar os carros do centro e pô-los às portas da periferia, como se a cidade fosse uma fortificação, não ilustra uma mudança de paradigma. Substituir a cidade de carros por transportes públicos cómodos, mais mobilidade verde, é um caminho muito melhor, mas que também não traduz uma mudança de paradigma. Mudar de vida seria largar o culto ou a obediência à mobilidade que faz de cidade uma experiência feliz para uma curta minoria apenas.

A proposta de Carlos Moreno – a cidade dos 15 minutos – que tem sido experimentada em Paris por Anne Hidalgo, Presidente da Câmara da Cidade Luz, vai precisamente no sentido dessa mudança: E se configurarmos as cidades de maneira a podermos dispensar o requisito da mobilidade?

A cidade dos 15 minutos é mudar de vida

Proporcionar o quotidiano da cidade num raio de distância-tempo de 15 minutos a pé é pôr a mobilidade à distância, trocá-la pela micromobilidade de proximidade. E ser a pé é importante, por razões de menor impacto ambiental decerto, mas também por razões de incorporação existencial do território. É a pé que reconhecemos e integramos o mundo em volta. A mobilidade, com a rarefacção que traz aos lugares, tornou-se o sinal de uma sociedade acelerada e que tem por sintoma a “fadiga” de que falou Byung-Chul Han por exemplo, mas também muitos outros teóricos que têm dado conta desta nossa era como um tempo de aceleração, fragmentação, desligamento.

A proposta da cidade dos 15 minutos não é, como pareceu imaginar Carlos Moedas, na qualidade de candidato a presidente de Câmara de Lisboa, mais um passo na conversão das cidades em imaginários de mobilidade, disponível como um estalido de dedos. É exactamente o imaginário oposto, que rematerializa o território sob os nossos pés e recalibra o ritmo da cidade pelo do nosso passo e não pelo velocímetro do carro, da scooter, ou de uma trotinete em excesso de velocidade. A cidade dos 15 minutos interrompe a lógica da aceleração e só uma interrupção assim, nas cidades e na vida social em geral, pode mudar a trajectória desgovernada por que tem seguido o planeta.

A cidade dos 15 minutos significa ainda a multiplicação das centralidades. Não uma, mas muitas. Por exemplo, em Lisboa seria redundante encontrá-la apenas no bairro de Alvalade, nas Avenidas Novas, ou qualquer outro núcleo abastado da cidade que, com exclusão de todas as outras partes, já se tenha configurado dessa maneira. Uma cidade dos 15 minutos promovida como um produto exclusivo e vedado à grande maioria composta pelos vencidos do sistema usurpa a mudança de paradigma necessária. Se quem polui menos, quem deixa o carro estacionado for quem pode e não quem quer. Como a alimentação biológica, não industrializada, que é apenas para quem a pode pagar.

Ora, multiplicar as centralidades é garantir que a possibilidade de um bairro rico do centro prescindir da mobilidade deve ser alargada aos bairros periféricos. Viver próximo do local de trabalho deve ser um direito que imprima políticas de habitação acessível nos bairros ricos e políticas de criação de trabalho descentralizado, distribuído por todo o território urbano.

A mobilidade serviu para a suburbanização cada vez mais alargada, como se houvesse apenas um lugar pleno – o centro. A mudança de paradigma passa, pois, por des-suburbanizar, rompendo com uma geografia da desigualdade, e repovoando a cidade com uma geografia da diversidade. Aliás, reflexão muito semelhante vale, à escala nacional, para o Interior face ao Litoral. Subúrbio e interior não são conceitos neutros, mas expressão de uma topologia da desigualdade, socialmente construída e sentida.

Não está em causa apenas uma cidade mais ecológica, mas a própria ecologia, pensada também através do que é uma cidade: uma cidade viva tem a potência da invenção de lugar, é o meta-lugar gerador de lugares singulares, sem subalternidades e serventias.

A pandemia faz parte do que não queríamos. Obviamente preferimos debelá-la quanto antes. Mas seria uma cegueira deixar, por isso, de ver na interrupção de mobilidade que a pandemia impôs a possibilidade de alternativas, de reflexão sobre elas e sobre a sua exequibilidade. Foi isso que fez Anne Hidalgo em Paris. Oxalá, seja esse um caminho que possamos trilhar também em Lisboa e no Porto, nas suas áreas metropolitanas, no horizonte da pós-pandemia. Sirvam as próximas eleições para este debate. Abrandemos o ritmo, para reforçar o gozo dos lugares.

Smart’ e ‘wise’  é melhor

Entretanto, a transformação digital das cidades tornou-se um facto incontornável. Seja pela centralidade cada vez maior do digital na vida social, seja pelo enorme potencial de soluções que a digitalização traz ao governo de cidades cada vez maiores. Contudo, se a transformação digital das cidades pode ir ao encontro da maior potenciação de modos próprios e exclusivos de ser cidade, também pode, com as mesmas tecnologias e ao mesmo tempo, introduzir dimensões de controlo perturbadoras, até mesmo distópicas, e colidir frontalmente com valores próprios e exclusivos de ser cidade.

Por exemplo, até que ponto queremos uma “smart city” como a cidade do filme “Minority Report” (uma Washington DC do ano 2054) com o seu sistema pré-crime? Quem serão os sujeitos que governam num regime de algoritmização?  As smart cities que a China está construir, algumas de raiz, como Xiong’an (nos arredores de Pequim), poderão ter muitas vantagens, mas nenhuma delas disfarçará a sujeição dos residentes e visitantes à vigilância e permanente identificação. E do lado das sociedades assentes na economia de mercado, as decisões sensíveis sobre como a comunidade se organiza não acabarão por ser restringidas aos conselhos de administração de grandes empresas gestoras dos dados? Indo um tudo nada mais longe, e se passarmos a ser governados por algoritmos sem sujeito, cuja intencionalidade não pode ser atribuída directamente a ninguém? Da mesma forma que algoritmos de condução ética de automóveis dispensam a avaliação ética humana, uma “algocracia” (expressão que designa o regime cujo governo cabe a algoritmos) tende a dispensar a participação cidadã.

A pergunta derradeira a fazer é se no par de ideias conjugadas na expressão “smart city”, não é precisamente a ideia de cidade que se perde, apesar de toda a infraestruturação high tech?

A “smart city” promete uma cidade confortável, segura, eficiente, simplificadora, o que, sem dúvida, é desejável, mas se for só isto, pode bem passar ao lado do valor próprio e exclusivo de ser cidade. Sobretudo, dois atributos das cidades podem estar em causa. Primeiro, a cidade que assegura a existência pública independentemente da existência privada, ou seja, a cidade que possibilita o anonimato. Segundo, a cidade como geradora de lugares, entendendo por lugares quaisquer referentes que ancorem hábitos que se habitam. Podem ser jardins, bibliotecas, teatros, cafés, sítios, etc.

As cidades são o ecossistema que permite estes dois atributos e os intersecciona numa criação permanente de diversidade. Por um lado, lugares que, sendo habitados, personalizam quem os habita em relacionamentos com rosto e nome e, por outro lado, um anonimato de fundo que nos faz a todos concidadãos iguais.

Ora, as “smart cities” podem ser concebidas tanto a favor como contra estes atributos. Uma cidade da vigilância aniquilaria a existência anónima. Por isso, é preciso uma vigilância cidadã, de segunda ordem, sobre a vigilância digital, que lhe trace os limites. Se “smart cities” significa cidades inteligentes, ou simplesmente espertas, convém que, sobre isso, e sem prejuízo disso, se persiga sempre a ideia de uma “wise city”, que associe o aproveitamento de todas as potencialidades da digitalização a uma reflexão cidadã participada sobre os fins e como queremos viver em modo cidade.

Uma cidade sábia será aquela que não prescinde de tomar consciência da inteligência disposta por uma “smart city” e debate as suas consequências. Por exemplo, o debate público sobre as garantias de novas liberdades negativas – não ser rastreado, não ser identificado, não ser filmado, não ser fonte de dados, etc. Uma “smart city” podia muito bem acolher o desafio de conter lugares públicos livres de dados.

Barbara Branchini, investigadora das “smart cities”, formula bem o ponto de equilíbrio: “O remédio é o envolvimento dos cidadãos. “Smart” não é apenas uma cidade dominada pela tecnologia, mas um lugar onde a participação, criatividade e educação são promovidas. O envolvimento dos cidadãos e a sua participação na tomada de decisões vão a par com o desenvolvimento tecnológico.”

O caminho de uma aliança

A digitalização tem o poder de libertar a experiência da espacialidade da rigidez do espaço físico, abrindo a possibilidade de geografias variáveis. Hoje o mais próximo pode estar fisicamente muito longe. Estar com outros num lugar partilhado, sermos vizinhos, tornou-se uma possibilidade mesmo se estivermos cada um num canto do planeta. Mas além dessa evidência, há duas coisas mais a dizer: por um lado, há um reverso da medalha que exige atenção crítica, a saber, que hoje o fisicamente mais próximo pode ser muito mais estranho e indiferente. Não demorará muito até que sair de casa, tomar um transporte público, fazer compras, beber um café e comer algo na rua possa ser feito sem ter de encontrar ninguém, toda a cidade lá fora tornada uma cidade-fantasma. Essa possibilidade da solidão seria a morte da cidade.

Mas há um outro caminho: pensar e agir, pelo contrário, no sentido de fazer cidade além dos seus centros, entrando nas suas periferias, distendendo-a com uma geografia variável, multiplicando os lugares e o seu sentido de encontro. E é nisto que a cidade dos 15 minutos pode dar conteúdo às “smart cities” e conferir-lhes um sentido emancipatório. Como uma aliança. A cidade dos 15 minutos proposta por Carlos Moreno assenta em vários princípios – ecologia, proximidade, solidariedade, participação. São os princípios que devem regular sabiamente as “smart cities”.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.