Ninguém sabe muito bem como tudo começou. Talvez no Kansas com um soldado americano. Talvez num acampamento militar britânico no norte da França durante a Guerra de 1914-18. Talvez algures na América do Norte. Talvez na China. Mas de onde quer que tenha partido, a doença rapidamente se espalhou por todo o mundo, causando milhões de mortos e ficando conhecida como “gripe espanhola”.

  1. Com milhares e milhares de soldados ainda à espera do final da guerra, vivendo em condições para as quais a palavra “insalubre” é excessivamente generosa, foi o ano ideal para a propagação do vírus da influenza H1N1 e da doença que provocava.

Nessa Primavera, começaram a surgir e a ser identificados os primeiros casos entre os soldados nas trincheiras de ambos os lados do conflito. No Verão, uma mutação mais agressiva do vírus foi detectada em casos identificados em França, na Serra Leoa e nos Estados Unidos.

À medida que novos soldados partiam para o campo de batalha e outros regressavam a casa ou eram internados em hospitais, a doença movia-se com eles, contagiando outras pessoas. Enchia os seus pulmões de fluido, afogando-os e impedindo-os de respirar, e conforme o tempo passava, os números de mortes por ela provocadas não paravam de aumentar, em gente de todas as idades e estado de saúde.

Quando chegou o Outono e depois o Inverno, tudo piorou. Em Portugal, por muito dado a “milagres” que o país fosse à época, nenhuma intervenção divina poupou os nativos às devastadoras consequências da “pneumónica” e do tifo, que logo por azar atacara o país nesse mesmo ano.

Sidónio Pais, que pouco antes se alçara ao poder de onde pouco depois um tiro no peito o iria expulsar, e o seu director-geral de Saúde – um tal de Ricardo Jorge – tentaram travar a dita, ordenando o fecho dos “estabelecimentos de ensino”, proibindo as “feiras e romarias” e as manifestações do “5 de Outubro”, e recomendando “acabar com os cumprimentos de uso, apertos de mão e ósculos de cerimónia”, tudo “gestos que repugnam à higiene e até à cultura” e “restos de passado selvagem”. Chegado ao fim o Verão de 1919, quando a última vaga da doença se fez sentir, Portugal contou dezenas de milhares de mortes causadas pela influenza.

Nos Estados Unidos, diferentes cidades reagiram de forma diferente à catástrofe. E se nenhuma escapou incólume, algumas sofreram menos que outras. O caso mais interessante terá sido o das “Cidades Gémeas” do Minnesota, separadas apenas pelo rio Mississipi: Minneapolis e St. Paul.

Em Minneapolis, as autoridades decidiram fechar escolas, teatros, igrejas e outros locais de reunião pouco depois de se terem verificado as primeiras mortes no Outono de 1918. Em St. Paul, a decisão só seria tomada três semanas mais tarde, embora a cidade tivesse começado a planear esse preciso cenário antes ainda dos seus vizinhos.

Embora recomendassem uma “quarentena auto-constituída estabelecida pelos cidadãos”, julgavam que “qualquer acção oficial que fosse tomada” não seria eficaz no “controlo do contágio da doença”, que aliás julgavam não ser “epidémica” junto da “população civil da cidade”.

No final de Outubro, no entanto, com o número de casos a chegar aos 3.000 e as mortes a ultrapassarem as verificadas em Minneapolis, St. Paul proibiu algumas reuniões públicas, e as restrições só não foram imediatamente maiores porque algumas complicações legais o impediram. Ao longo dos meses seguintes, ambas as cidades abririam e fechariam sucessivamente a economia, à medida que a doença avançava ou recuava.

Quando a epidemia acabou e se contaram os mortos, a mortalidade de St. Paul tinha sido 55% mais elevada do que em Minneapolis. E mais: de acordo com um recente estudo realizado pelos economistas Stephan Luck, Emil Verner e (o português) Sérgio Correia, a recuperação económica de Minneapolis foi consideravelmente mais próspera do que a de St. Paul.

A diferença entre as duas cidades do Minnesota correspondeu, segundo eles, a um padrão verificado em todos os EUA: quanto mais cedo e por quanto mais tempo uma cidade aplicou medidas restritivas da circulação das pessoas e da actividade económica, mais intensa foi a sua posterior recuperação económica.

A influenza destruiu a economia das cidades onde surgiu por causa da mortalidade que provocou, mas, argumentam, as medidas tomadas para diminuir essa mortalidade tiveram o efeito inverso a médio e longo prazo. Cidades como Seattle, Portland ou Omaha, que se mantiveram “fechadas” durante muito mais tempo, tiveram crescimentos muito mais acentuados do que cidades que mantiveram uma “vida normal” durante a epidemia, como Nova Iorque, Pittsburgh ou São Francisco.

Luck, Verner e Correia chegam até a quantificar a diferença: por cada 10 dias ganhos na aplicação de medidas de restrição, cada cidade terá ganho um crescimento de 5% no emprego em manufactura uma vez terminada a epidemia, e a cada 50 dias adicionais de prolongamento dessas mesmas medidas correspondeu um aumento de 6,5% desse mesmo emprego. As medidas de isolamento que foram tomadas “não só baixaram a mortalidade, como mitigaram as consequências económicas adversas de uma pandemia”.

O facto de ter sido assim em 1918, no entanto, não nos garante que seja assim em 2020 (os próprios autores do estudo reconhecem as enormes diferenças entre a realidade da época e a nossa, e como elas podem afectar uma espécie de reprodução do que então se passou). E é esse o grande problema que enfrentamos com a covid-19: nós só sabemos o que se passou no passado, e só podemos fazer conjecturas quanto ao que poderá ser o futuro.

Todas as decisões que tomarmos acerca do rumo a seguir nos próximos meses basear-se-ão apenas em cenários, em hipóteses, em suposições mais ou menos informadas, e não passarão de apostas relativamente arriscadas acerca de quais os custos inerentes a cada uma das alternativas à nossa disposição.

Ninguém – uso a palavra no seu sentido literal – sabe exactamente o que acontecerá se prolongarmos as medidas excepcionais que temos adoptado por mais dois ou três meses, nem ninguém sabe exactamente o que acontecerá se regressarmos à “vida normal” dentro de umas semanas, o que quer dizer que ninguém sabe exactamente qual das duas alternativas terá maiores custos e mais benefícios. E mesmo quando optarmos por uma delas, não teremos propriamente uma resposta: a única coisa que passaremos a saber é o que terá acontecido com a opção que escolhermos.

Continuaremos sem saber o que teria acontecido se a opção tivesse sido a inversa, e por isso não poderemos saber qual das duas teria sido a melhor. A natureza das coisas faz com que necessariamente andemos a navegar à vista, o que apenas contribui para que todos nós sintamos a insegurança e a incerteza que sentimos.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.