Nos últimos anos não têm faltado referências a “1984” de George Orwell, uma sátira em que o autor britânico desenvolve uma caricatura grotesca de uma sociedade controlada por um partido totalitário. Publicada em 1948, esta obra visionária é hoje considerada, de forma perturbante, realista e plausível na sua capacidade de descrever detalhadamente estratégias de repressão totalitária.

Ao longo dos últimos anos, da vigilância permanente (tanto em reality-shows como através da tecnologia e uso abusivo de dados) fomos evoluindo para outras formas insidiosas de controlo narradas no livro. O trabalho do protagonista Winston no Departamento de Arquivos, no qual ele é exímio, consiste em falsificar acontecimentos do passado descritos na imprensa escrita e substituir os artigos originais como se nada fosse. “Quem controla o passado controla o futuro: quem controla o presente controla o passado” é um dos lemas do Partido.

Quão diferente é isto do que tem sido feito hoje em termos de propagação de desinformação e revisionismo histórico? Nas páginas da imprensa atual, Internet e em livrarias não têm faltado artigos e livros a questionar cada vez mais os factos históricos, a deturpá-los de uma forma ampla e organizada ou a apresentarem a sua própria versão dos factos, tudo por iniciativa de uma direita cada vez mais radical, ironicamente muito ao estilo do que era feito na União Soviética sob a bota de ferro de Estaline.

A referência a Estaline não é de todo despropositada. Como militante na Guerra Civil de Espanha do lado dos republicanos, Orwell assistiu aos eventos dramáticos que tiveram lugar na Catalunha em 1937 e que levaram ao choque entre duas fações antifascistas – as forças anarquistas e socialistas que foram eliminadas pelas forças comunistas, com o apoio da União Soviética. Essa clivagem, narrada na sua obra “Homenagem à Catalunha”, constitui o ponto de partida que levaria à criação de “1984”.

A primeira parte do livro estabelece o mundo totalitário com todas as suas minudências; a organização interna do Partido, o controlo absoluto, o condicionamento contra um inimigo comum e a falsificação do passado. Todavia, onde o livro realmente se supera é na terceira parte que descreve a tortura física e mental a que Winston é submetido pelo Partido na figura de O’Brien.

É O’Brien que afirma com uma certeza absoluta que “o poder consiste em desagregar a mente humana para a reconstituir sob uma forma nova, sob a forma que entendemos dar-lhe. Começas a ver que tipo de mundo estamos a criar?”

É precisamente neste sentido que o mundo criado pelo Partido de “1984” encontra ecos perturbantes na atualidade social e política. Há forças ideológicas que nada mais desejam do que criar esse mundo descrito por O’Brien em que a mente se desagrega e se torna incapaz de distinguir entre o que é certo e o que é errado, falso e verdadeiro, sendo absorvida por um coletivo que funciona a uma só voz totalitária.

Como alguém muito envolvido nos acontecimentos turbulentos históricos do seu tempo, Orwell viu com os próprios olhos como ocorrem estas transformações insidiosas e tenta advertir-nos para o seu impacto. Não ignoremos as lições e os avisos de “1984”.