“Primeiro, um evento outlier, pois ocorre fora do reino das expectativas normais. Segundo, que tem um impacto extremo. Terceiro, um evento para o qual a natureza humana nos faz tentar obter explicações, após o facto, para o tornar racional e previsível”. Soa familiar? A teoria do ‘Cisne Negro’, apresentada por Nassim Nicholas Taleb em 2007, aplica-se na perfeição ao principal evento de 2020, a pandemia do novo coronavírus.

Não foi, claro, a primeira pandemia, mas desde a origem macabra através de um morcego num mercado na China até atingir a escala global apanhou o mundo de surpresa, um outlier que ninguém poderia prever.

Do ‘triplete’ de atributos, tal como Taleb o chama, o mais importante neste ’cisne negro’ foi o segundo. Se era difícil prever uma pandemia global, uma vez iniciada era quase impossível adivinhar o impacto tão extremo. Numa crise sanitária, os números são avassaladores:78,4 milhões de casos, 1,73 milhões de mortes.

Nos Estados Unidos, país com o maior número de casos, já é a principal causa de morte em 2020, a um ritmo de três mil falecimentos (um paralelo com o 11 de setembro) a cada dia e meio. O facto de a discussão sobre a pandemia ‘abafar’ outras causas de morte foi sempre algo desfocada. Claro que não podemos ignorar as outras doenças, nem justificar que não sejam tratadas, mas isso não ofusca o facto de a Covid-19 ter vindo, de repente, a uma velocidade tremenda, causar tanto dano à saúde humana.

Teria sido muito pior, certamente, sem o esforço hercúleo dos médicos, enfermeiros e outros ‘guerreiros’ da linha frente, com quem temos uma enorme dívida de gratidão.

Taleb explica que num ‘cisne negro’ os impactos superam as expectativas normais da ciência, das finanças e da tecnologia. Em 2020, a pressão sobre a ciência foi enorme, pois foi chamada a perceber o vírus, a aconselhar os políticos sobre as medidas de contenção e, ao mesmo tempo, a desenvolver uma vacina eficaz em tempo recorde.

Nas finanças e na economia, o impacto foi extremo e imediato. O boom económico global estava, sem dúvida, em desaceleração, mas o confinamento trouxe uma paragem da atividade e provocou recessões em quase todas as regiões, com a irónica exceção da China. As quebras nas receitas e os disparos no desemprego levaram a apoios orçamentais inéditos. O petróleo negociou em terreno negativo. Os índices acionistas tombaram a pique, mas recuperaram com a ajuda das gigantescas ‘bazucas’ dos bancos centrais.

As previsões apontam para uma recuperação económica em 2021 graças à chegada das vacinas. Mas não podemos esquecer que essa recuperação deverá ser apenas parcial e muito dependente da eficácia dessas vacinas. Nem podemos ignorar os danos permanentes da crise, o emprego que poderá ter sido destruído para sempre, pois o nosso comportamento mudou e isso vai provocar alterações estruturais.

Muitas dessas dinâmicas estão relacionadas com a tecnologia. No trabalho, nas relações sociais, na educação, na saúde, nas finanças, a pandemia obrigou-nos a ser mais tecnológicos, dependentes de ferramentas que nos permitiram, não sem uma adaptação exigente, atenuar os impactos do distanciamento social.

Em relação ao terceiro atributo, a tentativa de explicar a existência da Covid-19, para ver se deveríamos ter sido capazes de a prever, diria que é prematuro. Estamos cansados deste ano par que foi o mais ímpar de todos. Ainda estamos a lidar com o ‘cisne negro’ e precisamos que este saia de cena para depois tentarmos perceber o que aconteceu.