Hoje celebra-se o 25 de Abril. Passaram 45 anos desde o dia dos cravos postos nos canos das espingardas dos soldados, a rendição no quartel do Carmo, a entrega do poder, a alegria das ruas, o verdadeiro poder em rostos de todas as idades e Salgueiro Maia no meio a separar a liberdade da violência.

45 anos é mais do que a idade média dos portugueses. O que significa que já são maioria os que não viveram esse dia. O 25 de Abril tem mais idade do que a maioria, apesar do envelhecimento da população. Mas ter mais idade não significa ter passado à história. Porque o 25 Abril, desde o início, constituiu-se como um acontecimento tenso, que acontece sem poder dizer-se que aconteceu.

É um pretérito imperfeito que se prolonga e renova a cada ano que passa, como um teste do bem-estar do regime, e que assinala a passagem em Lisboa numa descida da Avenida sob o pólen primaveril dos plátanos e lódãos. 45 anos a acontecer e que fazem do próprio regime, com a sua Constituição e as suas instituições, não um estado de coisas feito, mas um horizonte de imaginários de mudança, cada um as suas esperanças, certamente muitas delas entre si incompatíveis.

Por isso, se a pergunta de Baptista-Bastos “onde estavas no 25 de Abril?” vai tornando-se anacrónica – o que a paródia que dela fez Herman José já mostrava há largos anos –, a pergunta “que falta acontecer hoje ao 25 de Abril?” é cada vez mais a pergunta palpável, sobre o seu sentido colectivo, que este país legou a si mesmo, com calendário anual a cumprir. E faltará sempre qualquer coisa. Como a inquietação cantada pelo José Mário Branco “há sempre qualquer coisa que está pra acontecer”. E essa é a vida que continua, vida activa do 25 de Abril, ADN de um regime que dentro de três anos há-de ter durado mais do que longos 48 anos de autoritarismo.

O 25 de Abril foi a revolução da liberdade como poucas houve na história da Europa, sem violência, feliz, inspiradora. Para contribuir com algum universalismo para o mundo afinal não era preciso ocupá-lo. E talvez este país não tenha dado outro maior. É que, além de acontecimento, o 25 de Abril foi um programa político de ideias claras, historicamente lúcidas, a perseguir para o país, mas com validade global. É esse programa que confere ao 25 de Abril uma vida que é também aqui e agora, e futuro. Os 3 Ds do Movimento das Forças Armadas – Democratizar, Descolonizar e Desenvolver – em muitos aspectos estão cumpridos, mas em muitos outros o seu sentido prossegue.

Primeiro D – num tempo em que as liberdades recuam à escala global, a democracia em Portugal reforçou-se ao conceber e implementar com sucesso um primeiro governo minoritário apoiado por uma maioria parlamentar, incluindo partidos que nunca tiveram próximos do poder executivo. E reforçou-se ao demonstrar que há lugar político à alternativa, sem subserviências. Ainda assim, há muito a aprofundar: falta democracia mais deliberativa, partidos políticos mais porosos com a sociedade, democratização do poder regional, das instituições europeias, mais espaço público, nacional, europeu e global.

Segundo D –  já não há colónias portuguesas desde 1976, mas há ainda muita descolonização por fazer, sobretudo do país sobre o próprio país, em formas de dominação cultural que persistem, alimentadas por elites, e que perpetuam desigualdades sociais e territoriais que já não se admitem. A captura do país por elites do dinheiro, mas também da cultura e da política, é uma vergonha que não se tapa com o exemplo das excepções.

Só o terceiro D, de desenvolver, é que merece ser substituído e não por que esteja realizado, mas por ser um objectivo demasiado ambíguo. Desenvolvimentos há muitos e os que mais avançam são os menos recomendáveis. Capitalismo verde, desenvolvimento sustentável, por exemplo, em vez de corrigirem uma trajectória de risco, procuram assegurar forma de levar mais longe essa mesma trajectória, fiados na descoberta de soluções a tempo de acudir todas as insustentabilidades e externalidades negativas.

Curiosamente, os melhores argumentos conservadores sobre os limites da capacidade humana de controlar os efeitos das sua acção sobre o mundo servem hoje muito melhor preocupações emancipatórias de justiça para com as gerações futuras. Acresce que a semântica do desenvolvimento inclui uma hierarquia de países, sociedades e economias em mais e menos desenvolvidos, subdesenvolvidos, em vias de desenvolvimento, que funcionam sobretudo como selos de inferioridade que rotulam de forma muito consequente e exclusora os cidadãos desses países. É a mesma semântica do  norte global sobre o sul global, com o nosso país ambiguamente no meio a jogar nas duas posições.

Boaventura de Sousa Santos propôs pôr no lugar desse D outro, de desmercantilizar, e bem porque é muito clara a tendência opressora de conformar, sem excepção, todos os aspectos da vida humana ao esquema de funcionamento da lógica de mercado. Hoje, a defesa do bem comum passa em grande medida pela  rejeição da mercadorização dos bens sociais mais básicos, saúde, educação, segurança social. Mas também pela expansão da lista desses bens desmercadorizados, para neles incluir bens sociais cada vez mais inacessíveis, como a habitação e o trabalho. E outros bens, ecológicos, como os recursos naturais. Humano e mundo nem sequer devem ser pensados como recursos.

Esta fantasia comum de um acontecimento que desde 1974 não termina, inconformado, foi uma invenção brilhante, tanto mais quanto, sendo provavelmente mais fruto de acasos e expedientes, é mais justo atribuí-la a uma intencionalidade difusa do povo do que a alguém em particular. O 25 de Abril é ele próprio bem comum.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.