Ontem, foi 7 de outubro. Passou um ano sobre os atentados do Hamas que vitimaram 1200 pessoas, na maioria pessoas civis tolhidas indiscriminadamente. Importa começar por aqui. Em entrevista recente à BBC, em Doha, o segundo na hierarquia do Hamas, Khalil al-Hayya reiterou que os ataques não pretendiam atingir civis, apenas soldados da ocupação, e que se pretendia fazer reféns apenas entre soldados capturados, para negociar uma troca com prisioneiros palestinianos. Mas o mesmo Khalil al-Hayya, numa mensagem vídeo disseminada há um par de dias, enaltecia os “actos heróicos” das brigadas Al-Qassam.
O que o Hamas permitiu que acontecesse no dia 7 de Outubro de 2023 foi uma chacina criminosa, mesmo considerando o contexto, o que se traga de memória, de ferida. Não começar por aqui é o tipo de entorse que não ajuda a pensar. A tragédia aconteceu, deliberada ou grosseiramente negligente, independentemente de todo o direito de resistência que assiste ao povo palestiniano.
Há um ano, antes de 7 de Outubro, havia uma ocupação ilegal e o direito a resistir-lhe. Israel fez de Gaza e da Cisjordânia territórios ocupados e fez da faixa de Gaza um campo de concentração, com mais de dois milhões de pessoas sujeitadas a um regime de apartheid. São décadas e décadas de opressão nestes territórios, sentida no quotidiano mais simples, a criança ir à escola e ser subjugada, o adulto deslocar-se para trabalhar, ou rezar, e ser impedido, décadas de sufoco dos palestinianos, até dentro das suas casas.
Desde a primeira intifada – intifada quer dizer agitação, revolta, sobressalto da própria sociedade – estava em causa sacudir a indignidade de ser tratado sub-humanamente, os palestinianos a serem tomados por “bárbaros” diante da civilização, até tomados por “animais” não humanos. Estas expressões degradantes não são apenas impropérios que a fúria liberta, mas uma classificação que serve o propósito de os poderes político, militar e policial de Israel se auto-desculparem e justificarem o tratamento indigno a que votaram a população civil palestiniana. Antes, até 7 de Outubro, os palestinianos viviam sob apartheid e eram vítimas de racismo. Há meio século que é assim. Não é um vazio.
Quando se apregoa que Israel é a única democracia no Médio Oriente, importaria lembrar que foi Israel quem tudo fez para terminar com a democracia na Palestina. Quando em eleições livres e bem participadas, o vencedor não foi quem Israel quis, tudo fez para que aquela democracia não passasse do primeiro dia. E quando se diz que a Palestina não consegue organizar-se como um estado moderno, capaz de prover uma vida económica sem assistência, também importa dizer que é Israel quem controla a economia da Palestina, controla os movimentos, impondo garrotes a tudo, o acesso à água, à energia, até à ajuda humanitária. Os palestinianos têm o direito a resistir, com os meios de resistência ao seu alcance, evidentemente os meios legítimos e não todos.
Mas, depois de 7 de Outubro, Israel extremou ainda mais a violência. Desde há um ano, o apartheid deu lugar ao genocídio. As Forças de Defesa de Israel bombardeiam por inteiro a faixa de Gaza, levando a cabo a limpeza de uma população de um território, matando-a ou expulsando-a. Reduzem tudo a escombros, a ponto de se avaliar serem necessários largos anos só para remover os destroços. Não lhes constitui objecção ética devastarem hospitais e escolas, ou abrigos, e deslocarem a quase totalidade da população de Gaza, não uma, nem duas, mas inúmeras vezes ao longo de um ano. Não lhes constitui travão as convenções e o direito que regulam a guerra, desprezando os limites imprescindíveis do exercício da violência.
Pelo contrário, desde 7 de Outubro, a violência assoma em estado puro na Faixa de Gaza, à margem de qualquer direito jurídico ou consideração moral. São já mais de 40 mil as mortes palestinianas diretamente ligadas ao conflito, entre elas mais de uma dezena de milhar de crianças – menores de 18 anos, para que não haja equívocos de interpretação. E entre as vítimas mortais também se contam centenas de funcionários das Nações Unidas, centenas de jornalistas, académicos, vozes públicas, centenas de médicos, enfermeiros e outro pessoal ligado à assistência médica. Os palestinianos não estão a ser mortos apenas individualmente, mas cada um, e cada criança em particular, também enquanto povo palestiniano. O acto e a intenção são as de um genocídio em Gaza.
Nenhum exercício legítimo de violência dispensa uma justificação. De outro modo, a violência redobra-se na sua violência, intoleravelmente fora de medida, desumanizada. Mas, o posicionamento de Israel é radicalmente violento pela maneira precisa como se reivindica esse direito de excepção, de uma legitimidade sem legitimação.
Por mais graves que sejam as acusações, por mais sérias e independentes que sejam as entidades envolvidas na acusação, tudo prossegue, no escândalo da impunidade. Nem sequer se trata de apontar à comunidade internacional – e a todos nós que somos do “Ocidente” geográfico e histórico –, uma dualidade de critérios, de dois pesos e duas medidas. Ou apenas isso. É ainda pior: tolera-se Israel pôr-se neste lugar da excepção, acima de qualquer proporção ou justificação.
E nada temos podido contra isto. Esta máxima impotência que vivemos diariamente é a demonstração inapelável do poder de violência pura que Benjamin Netanyahu reivindicou depois de 7 de Outubro. Apesar de assistirmos dia após dia, quase em directo, a um meticuloso genocídio, pouco nos resta a fazer, na tremenda impotência em que nos encontramos, se não ir desviando os olhos para outros problemas. Mas o assunto fica connosco, uma má-consciência persistente como as doenças crónicas do corpo. Por cada israelita assassinado no dia 7 de Outubro já foram assassinadas dez crianças palestinianas.
É contra esta impotência comum a todos nós que se debate António Guterres. Israel declara-o agora persona non grata e proíbe-o de entrar no país, como, antes, proibira a entrada na faixa de Gaza de altos dirigentes das Nações Unidas, bem como de jornalistas. Israel acusa Guterres de não condenar o Irão, sendo essa acusação falsa. A condenação foi feita e é pública. Simplesmente, Guterres não desvia os olhos. Até pode ser o primeiro rosto de uma impotência de que todos fazemos parte. Mas é também o primeiro rosto de um inconformismo lúcido e incansável, de que a ordem internacional não tem sido parte até agora, mas de que devemos ser parte.
O direito penal internacional deve julgar os responsáveis pelo crime perpetrado a 7 de Outubro, e cumpre ao Hamas colaborar activamente. Porque tem de não ser uma organização terrorista. Mas a comunidade internacional deve julgar, através das suas instâncias de regulação do direito internacional, o governo de Israel como organização genocida. E cumpre aos governos livres e decentes deste mundo serem consequentes.
Se o Tribunal Internacional de Justiça em Haia toma por verosímil a prática de um genocídio sobre territórios ilegalmente ocupados, então há um dever internacional que respeita a esses governos e que é extensível, pelo menos moralmente, a todos nós que temos algum papel na sua legitimação democrática, no plano nacional, mesmo no europeu. Não é aceitável embarcações com pavilhão português a transportarem explosivos para Israel. Não é aceitável que o povo palestiniano não veja o seu Estado reconhecido por Portugal. Não é aceitável que a União Europeia não decrete um embargo ao envio de material bélico para Israel. Seja qual for o passado que tragamos, somos sempre responsáveis pelo nosso presente.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.