Em 22 de Maio de 1998, desaparecia prematuramente Francisco Lucas Pires, uma personalidade relevante da vida pública nacional. O dia, que começara festivo, pois era também o dia de abertura da Expo 98, ficaria ensobrado por este acontecimento infausto. O destino dar-lhe-ia ainda a oportunidade de assistir à inauguração do evento, que simbolicamente representava o Portugal moderno, democrático e europeu que ambicionara e pelo qual se batera no decurso de uma carreira política de mais de duas décadas.

Iniciando a sua intervenção pública na direita nacionalista, nos tempos de estudante em Coimbra, de pendor isolacionista e integracionista no que respeita à questão ultramarina, o seu pensamento evoluiu do cepticismo em relação à Europa democrática e pós-colonial para a defesa intransigente do pluralismo político e a unidade europeia. Influenciado pela doutrina democrata-cristã, dedicou-se, depois do 25 de Abril, nas tribunas da política e da academia, à defesa do projecto europeu, tendo sido, porventura, o português com o pensamento mais estruturado e fecundo sobre a questão, acerca da qual nos legou uma vasta obra.

Para Lucas Pires, a União Europeia era a tradução política e institucional de um todo civilizacional assente nas tradições grega e judaico-cristã – a herança de Atenas e Jerusalém de que fala George Steiner – a que se somaram o conceito de império, entendido enquanto ideia de unidade de civilização e do Direito, legados de Roma.

Tal herança, que, como dizia, fez do “mais pequeno dos continentes [o] mais universal de todos eles”, permitira construir, sob a égide do “dualismo entre fé e lei”, o crescimento da ideia de liberdade e da dignidade do ser humano, valores matriciais em que o projecto europeu assenta e que procura assegurar, através da promoção da paz desejavelmente perpétua, como a pensava Kant, da prosperidade geral e da cooperação entre os Estados.

Em seu entender, tal desiderato só seria exequível pela união política da Europa e não apenas económica, como o projecto europeu tinha sido concebido inicialmente, assente na cidadania activa e participativa, condição essencial da construção de uma genuína democracia europeia, em que todos fossem sujeitos de direitos e deveres comuns. Coerentemente, fez do alargamento das competências do Parlamento Europeu (PE) uma das suas causas maiores, instituição onde, por longos anos, desenvolveu notável trabalho. O PE, único orgão comunitário eleito por sufrágio directo, devia assumir, em seu entender, um papel central no processo de decisão enquanto “embrião miniatural do espaço público europeu”.

Paralelamente, pugnou pelo alargamento das competências comunitárias nos domínios das políticas externa e de defesa, dos direitos sociais e do ambiente, condição do reforço do projecto europeu, não apenas em benefício dos seus cidadãos, mas também de robustecimento de uma Europa que, dilacerada pelos dois conflitos suicidas do Séc. XX, que a deixaram exangue, perdera, em favor dos dois blocos emergentes após 1945, grande parte do protagonismo que até então tivera no mundo. Para Lucas Pires, uma Europa forte significava, em suma, a afirmação no palco mundial dos valores que lhe deram forma.

Se a aproximação do vigésimo aniversário do desaparecimento de Francisco Lucas Pires serve de pretexto para relembrar o seu contributo para o projecto europeu, nos domínios da acção política e da obra jurídica e ensaística, os difíceis momentos que a Europa vive presentemente, com a brecha criada pelo Brexit, a reemergência de nacionalismos agressivos, a ameaça terrorista ou o crescente ambiente de instabilidade, com uma renovada ameaça vinda de Leste e as dúvidas quanto à lealdade do aliado  de sempre – os Estados Unidos da América – tornam ainda mais pertinente a evocação da sua memória e dos valores que sustentou.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.