Um dos notáveis trabalhos de Leonardo da Vinci foi recuperado faz pouco mais de um ano: uma misteriosa obra cuja luminosidade e qualidade veio ao de cima depois de um prolongado restauro, que exigiu, para além de tempo, uma dedicação extrema. Ainda assim, o restauro originou numerosas críticas e controvérsias junto da comunidade científica e artística, por exemplo por se considerar que o restauro retirava o caráter sagrado original da obra deixada pelo artista. Mas depois de um debate prolongado, que durou praticamente duas décadas, e de seis anos de restauro, a obra misteriosa do génio renascentista foi mesmo restaurada. “A Adoração dos Magos” é hoje uma das mais fantásticas obras-primas depois de recuperadas as cores originais.

Tal como a obra do velho mestre da Renascença, também a recuperação da União Europeia (UE), sem dúvida a maior obra-prima social, política e económica que os povos europeus construíram faz mais de 60 anos (considerando a CEE como o original percursor), com o propósito de promover a paz e a prosperidade social e económica entre os povos. Este é talvez o trabalho de restauro que é necessário levar a cabo, de forma a que as cores originais sobressaiam, trazendo novamente ao de cima a beleza das “cores” originais do projeto europeu. Um trabalho que será prolongado, e que não será igual ao original, mas que poderá sem dúvida trazer de novo aos olhos de todos os europeus os valores que estiveram na base da fundação de um projeto comum.

A erosão do centro político é um obstáculo à agenda europeia

A erosão do centro político europeu tem representado uma dificuldade relevante para que se leve por diante uma agenda de reformas europeias que permita construir novas fundações estruturais, essenciais para evitar novas crises sistémicas e para garantir uma maior solidariedade entre os países europeus em situações de crise.

Desde o início do século que se tem registado uma profunda alteração do paradigma político nos países desenvolvidos. Para onde quer que se olhe, o centro político moderado, seja de esquerda ou de direita, parece agora estar sob fogo do que se pode chamar uma verdadeira rebelião dos eleitores, que, ao desafiar o chamado establishment – na prática, o sistema político tradicional –, têm tendido a beneficiar novas forças políticas que apelam a valores populistas que representam, na prática, um regresso ao protecionismo comercial e à soberania nacional.

A situação de maior evidência, depois da França ter eleito Emmanuel Macron, um europeísta, verificou-se nas eleições gerais italianas, que criaram um impasse e uma maioria parlamentar eurocética, que acabou por ser a solução governativa do país transalpino – uma espécie de geringonça com uma agenda mais protecionista a funcionar como cimento ideológico. Ainda assim, os mercados premeiam a estabilidade e, de facto, a situação no Velho Continente parece estar mais estabilizada, após a solução governativa encontrada em Itália – ignorando-se para já o que coloca pela primeira vez uma maioria protecionista e eurocética num governo de um dos países mais relevantes do euro.

Contudo, o controlo desta espécie de vulcão adormecido que representa o euroceticismo pode não representar mais que uma estabilização de curto prazo, na mesma medida que a ausência de reformas estruturais no Velho Continente mantém as preocupações relacionadas com o crescimento e com a dívida soberana bastante vivas, num momento do ciclo monetário em que o posicionamento do Banco Central Europeu (BCE) poderá não ser tão acomodativo como tem sido até ao momento.

As reformas estruturais foram de grande importância para corrigir desequilíbrios… 

É preciso dizer que a Europa tem conseguido construir, de forma lenta, uma fortaleza ao redor do euro em termos de política monetária, e mantido uma mensagem política mais sólida em favor do projeto de integração. A isto juntou-se uma favorável conjuntura económica mundial, que têm prevalecido sobre tudo o resto nos últimos anos, e que se tem revelado essencial para diminuir os riscos de contexto, sobretudo os que estão relacionados com os chamados países da periferia. Mas não é de ignorar a relevância que alguns esforços e reformas têm tido no sentido de corrigir os desequilíbrios.

Desde logo as contas públicas em países como Portugal, França, Espanha ou Grécia,  onde os défices orçamentais têm vindo a cair drasticamente e, em alguns casos, se têm transformado em excedentes. Depois, importa referir a importância que as reformas no mercado laboral europeu, introduzidas entre 2012 e 2014 pela França, Itália, Espanha e Portugal, tiveram e que estão agora a produzir resultados. As taxas de desemprego recuaram significativamente, em particular em países como Espanha ou Portugal, onde recuaram mais de dez pontos percentuais desde os máximos registados em 2013 – com os salários a registar ainda subidas moderadas, o que pode indiciar também que estas são quedas para níveis mais sustentáveis no que diz respeito ao desemprego.

Mas existe ainda muito trabalho pela frente para estimular o crescimento sustentável

Apesar da redução verificada nos défices orçamentais, os níveis de dívida pública não recuaram, nem convergiram. Pelo contrário, em países como Portugal têm vindo a aumentar. Adicionalmente, a conta corrente da balança comercial nos países periféricos tem vindo a melhorar, mas à custa das relações com o resto do mundo e não tanto através da correção dos desequilíbrios comerciais entre países da zona euro – a maior evidência disto é o grande aumento do excedente da Alemanha desde 2008.

Esta incapacidade para corrigir os desequilíbrios não é tão surpreendente como  isso e explica-se, essencialmente, pela diferença no que diz respeito à competitividade da periferia para com as economias do centro – sobretudo a Alemanha. Apesar das reformas laborais, no caso dos custos unitários de trabalho persiste uma diferença assinalável entre estes dois blocos que ainda necessita ser corrigida – sobretudo Itália, onde se verifica ainda uma grande diferença, mas também Portugal, Espanha e Grécia têm muito a fazer em matéria de flexibilização laboral, no sentido de aumentar significativamente a competitividade das respectivas economias. Ou seja, apesar das reformas implementadas no mercado trabalho durante os anos das intervenções externas, na Europa do Sul os custos unitários de trabalho ainda permanecem bastante rígidos.

Estará uma crise na banca verdadeiramente contida?

Neste bloco económico permanecem ainda desafios a vencer no setor financeiro – e isto ficou evidente pela reação dos mercados financeiros durante o impasse político em Itália –, o que mostra que a banca ainda se encontra num estado de vigilância apertada.

Por outro lado, algumas dúvidas podem ser colocadas relativamente ao isolamento do setor bancário e financeiro, e sobre se os mecanismos existentes são de facto suficientes para evitar contágio e uma crise em larga escala. A verdade é que a crise das dívidas soberanas trouxe um fundo de resgate (o ESM – European Stability Mecanism) e a possibilidade de compra de obrigações soberanas europeias sem limite (as OMT) por parte do Banco Central Europeu.

Contudo, os recursos dos fundos do programa de resgate são limitados e estão sujeitos, por exemplo, à aprovação de parlamentos regionais como o Bundestag. E o BCE não pode implementar os programas de aquisição de obrigações sem que os países se comprometam com objetivos fiscais e de reformas estruturais, o que pode trazer colisões políticas indesejadas, alimentando ainda mais o euroceticismo.

Bottom’s up: a Europa levará tempo a reconstruir-se, maior integração permanece a chave

As condições que existem neste momento favorecem a manutenção de um cenário para já construtivo para a União Europeia e que deverá manter-se nos próximos dois anos. As taxas de juro permanecem baixas e assim deverão continuar, o clima político está controlado (embora não normalizado) e os indicadores de atividade e confiança mantêm-se em zona de expansão.

No entanto, é necessário um maior esforço de integração, quer por parte das instituições europeias, no sentido de conferir maior partilha do risco e maior integração europeia, quer dos países da periferia, com vista a corrigir desequilíbrios de competitividade para com o centro europeu. E isso exige, nestes dois planos que referenciei, uma capacidade política para encetar reformas estruturais e fazer avançar uma agenda de coesão europeia. Executar esta agenda de transformação, num contexto de crescente euroceticismo e populismo político, será complexo e exigirá a gestão de muitos e delicados equilíbrios. Uma estrada de reabilitação complexa que poderá ter impacto na capacidade económica de crescimento no médio prazo.