Winston Churchill definiu, em 1939, a Rússia como “um enigma, envolto num mistério, dentro de um enigma”. Na altura falava de Moscovo como “o outro”, uma terra inescrutável e ameaçadora que seguia as suas poucas regras, sem interesse por aqueles que seguiam regras mais abertas. Mas esqueceu-se a segunda parte da frase de Churchill: “talvez a chave esteja no interesse nacional da Rússia.” O problema é que há muitas centenas de anos que se discute o que é a “alma russa” e para ela sempre existiram múltiplas respostas, todas tão enigmáticas como como ela.
Até Alexander Solzhenitsyn, sofredor como um patriarca da alma russa, nunca a entendeu totalmente. O que é o “enigma russo” de hoje? Vladimir Putin ou Roman Abramovich? O que foi o de ontem? Os Romanov ou Lenine? Tal como a Europa de Lisboa aos Urais defendida por De Gaulle, a Rússia sonhada por Putin vai de Moscovo a Vilnius e a Kiev e às estepes da Ásia Central. Essa é a essência do imperialismo.
Vladimir Putin não tem desculpas. E as que exibe são esfarrapadas. A 24 de Fevereiro o mundo mudou. Oficialmente acabou a Guerra Fria. Ou o pós-Guerra Fria. E o conceito de império russo foi formalmente reconstruído. Ao anunciar a invasão da Ucrânia, um país que nega que alguma vez tenha existido, Putin fez o mesmo que Estaline quando disse que a Polónia nunca existira e assim podia invadi-la e dividi-la com Hitler em 1939. Para Putin o inimigo não é a Ucrânia, é o Ocidente. Há décadas que o insípido Ocidente achava que Putin compartilhava os seus valores.
George W. Bush pensava isso. Barack Obama também. Angela Merkel concordava. Donald Trump só faltou converter uma Trump Tower em Putin Tower. Tudos estavam equivocados. O Ocidente perdera há muito o interesse no espaço ex-soviético e só o viu como fonte de matérias-primas e depois como um consumidor de luxo. A política de acomodação dos chanceleres Schoroeder e Merkel com a Rússia de Putin tornou a Alemanha, o motor económico da Europa, dependente desse país.
A indústria dos diamantes belga sorriu. Os brancos suíços e britânicos abraçaram a ideia. Ninguém olhou para dentro da Matrioska.
Quando em 1991 Boris Yeltsin dissolveu a URSS, a Europa respirou e ouviu música nos seus ouvidos: tinha terminado a Guerra Fria. Alguns estrategas ocidentais tentaram mesmo integrar a Rússia na NATO, frente a um possível inimigo futuro, a China. Outros achavam que se deveria dissolver a aliança. Só os vizinhos próximos da Rússia recordavam que por detrás da URSS estavam as cinzas do império de Catarina II. Obama e Trump perderam interesse na Europa e na NATO e apostaram todas as cartas em que o futuro se decidiria na Ásia e que a organização era demasiado cara.
Vladimir Putin apostou que as democracias eram hoje jarras frágeis. E a Europa, demasiado tarde, vê que não está a falar com um fantasma da URSS, mas com um inimigo. Que não reivindica nenhuma ideologia universal de solidariedade entre povos e cujo única argumento é a raça. Tal como Hitler dizia que a raça e o espaço vital eram o fundamento do seu belicismo. Só que as nações definem-se, pelo menos desde 1945, não pela raça mas pela vontade de conviver num espaço político e não étnico. Ao contrário do que desejam os seguidores ocidentais de extrema-direita de Putin. Que não está rodeado de comunistas idealistas, mas de oligarcas cujo único fito é o poder e o dinheiro. Por isso se deram tão bem no Ocidente e nas principais capitais europeias.
No mundo de Putin é impossível equilibrar Marte, o deus da guerra, com Vénus, o deus do amor. O mundo estava há muito a caminhar numa trajectória que o levaria a um capítulo negro da história como este. O combate na Ucrânia é a expressão de uma guerra pelo controle da alma do planeta. Uma luta entre as democracias (apesar das suas deficiências notórias) e as autocracias, que desejam impor sistemas autoritários sem limites.
Putin e os seus perceberam a debilidade. Untaram as mãos a pessoas como o antigo chanceler alemão Gerhard Schroeder (com assento na administração da Rosneft) ou o primeiro-ministro francês François Fillon (numa petroquímica russa), para já não falar de líderes que passaram pelos governos da Áustria, Finlândia e Itália, com lugares confortáveis no “payroll” russo. Lenine definia-os bem: idiotas úteis. Legitimaram-se os interesses russos, que deram músculo à City britânica (muitos chegaram a chamar-lhe Londongrad) e os partidos aceitaram os presentes dos oligarcas.
A Alemanha colocou-se nas mãos do gás vindo da Rússia (mesmo que os EUA tivessem os seus próprios interesses económicos quando recusavam o Nord Stream 2). A ideia de que se pode ser rico mas não ter responsabilidades é tentadora. A Europa fez isso. É rica. Quer continuar a sê-lo. Mas não quer ser poderosa e cita o exemplo da Suíça, mas esta tem umas forças armadas enormes e até há pouco tempo os seus cidadãos recebiam treino militar todos os anos.
A Europa engordou e achou que poderia subcontratar a preços de saldo a sua defesa. E a defesa de alguns valores que a tornaram, outrora, um símbolo para o mundo. O preço vai ser alto por se confrontar o despotismo. E os líderes democráticos (tal como os empresarias, que pensam apenas nos dividendos de curto prazo) vão ter de convencer os eleitorados que o custo vale o sacrifício. De outra forma, Putin poderá perder agora. Mas vencerá nos princípios que propõe ao som de bombas.
Estamos numa encruzilhada histórica. E o fim dela não passa apenas pelo isolamento global de Putin. Uma pouco conhecida obra de Mikhail Bulgakov, “The White Guard” descreveu-nos o terrível ano de 1918, uma semana antes do Natal, onde um mundo fracturado pela guerra e confusão ameaça destruir não apenas a família Turbin mas a sua inteira cultura e forma de vida.
O livro escrito na década de 1920, mas que só foi publicado na então União Soviética em 1966, passa-se em Kiev, a cidade onde Bulgakov nasceu. Nele, as tropas alemãs deixam Kiev depois da derrota na frente ocidental e da abdicação do Kaiser Guilherme II e do governo fantoche local. A cidade passa a estar sobre ataque de um nacionalista ucraniano. Contra estes estão os irmãos Turbin, integrantes da Guarda Branca. Tudo é arbitrário e frágil. Perto estão as tropas de Trotsky, também prontas para atacar. Bulgakov tenta reconstruir estes contraditórios acontecimentos e neles encontramos muitas alusões a “Guerra e Paz” de Tolstoy.
Ambas as obras partilham um mesmo tema: as preocupações individuais, por um lado, e os acontecimentos históricos destrutivos, por outro. Bulgakov, tal como Tolstoy, atacam a pompa dos chamados “grandes homens” (generais e políticos) que imaginam poder influenciar decisivamente os acontecimentos históricos. Na realidade são apenas marionetas, e as suas decisões são derivadas de forças que desconhecem e que não controlam.
Bulgakov não poupa ninguém e aí talvez nos diga que o apocalipse está perto, tal como acontece no livro que mais nos faz tremer, “Os Demónios”, de Fiodór Dostoiévski. Onde um dos líderes de uma célula revolucionária, Stravróguina, acaba por esvaziar a alma dos homens para que os demónios possam entrar nela. Talvez Dostoiévski estivesse a pensar nos dias de hoje.
As lições de Mafalda
Mafalda foi, na sua infância rebelde, a voz que muitas gerações escutaram como eco das suas dúvidas. Quino fez dela mais do que uma miúda cheia de interrogações e com algumas certezas. As suas frases certeiras desafiaram o tempo e continuam actuais.
Em Espanha foi agora editada uma compilação de algumas das suas melhores e mais contestatárias “tiras” sob um sugestivo título: “Mafalda, presidenta”. Ela, e o seu inexcedível grupo de amigos que vivem na Argentina, falam de tudo: de política, de justiça social ou de direitos humanos. Mais de meio século depois Mafalda, a menina que lia melhor o mundo do que a maioria dos adultos, continua tão perspicaz como o foi na época. Como se o tempo passasse e toda a sua inquietação continuasse igual.
Numa das “tiras”, o pai de Mafalda pergunta-lhe: “Podias ver se um jornal que anda por aí é antigo ou é de hoje?”. Ela olha à volta e vê o jornal depositado num sofá e lê a manchete: “A URSS recusou uma proposta norte-americana”. E ela responde ao pai: “As duas coisas, papá!” A guerra da Ucrânia mostra que nada mudou.
As consequências do passado presenciado por Mafalda é o nosso presente. E, afinal, Mafalda apareceu em 1964 e durou uma década. Ela dizia então: “Não é certo que todo o passado foi melhor. O que se passava era que os que estavam pior ainda não se tinham dado conta disso.”
A mais contestatária dos personagens de Quino é, no entanto, a pequena Liberdade, que só surgiu em 1970. É talvez uma Mafalda em tamanho minúsculo. Ambas, por exemplo, têm um debate sobre a inflação que por pouco não leva a que um velhote tenha um enfarte. Por fim Mafalda diz: “Deveria haver um dia por semana em que os jornais nos deveriam enganar um pouco dando boas notícias.” Não existem.
As melodias de Marr
Morrissey era o poeta dos Smiths. Johnny Marr era o alquimista da guitarra melódica. Só a junção dos dois permitiu que estes se tornassem uma das mais determinantes bandas da década de 1980. Depois do fim do grupo Marr foi trabalhando em diferentes projectos, impondo sempre a cristalina sonoridade de uma guitarra inconfundível.
Agora chega a vez de editar este novo álbum, “Fever Dreams Parts 1-4” (CD BMG), pouco depois de ter havido mais um choque entre Morrissey e Marr, quando aquele pediu a este que deixasse de referir o seu nome nas entrevistas. Uma pequena luta entre o ego enorme do antigo vocalista dos Smiths e que não esquece que Marr o culpou, e muito, pelo fim da banda. O choque definitivo entre Morrissey e Marr aconteceu em 1987, quando aquele queria fazer uma versão de um tema de Cilla Black, contra a ideia deste. A canção chamava-se “Work is a Four Letter World” e Marr foi convidado a ir trabalhar para outro sítio.
Aqui escutamos o fascínio de Johnny Marr pelo som electrónico no inicial “Spirit Power and Soul”, onde se sente a nostalgia dos New Order e ele canta: “Yesterday is gone/Today I’m so on the run”. Mas o mundo sonoro de Marr é enorme: vai desde ao som pós-punk de “Receiver” ao sombrio “Ariel” ou ao curioso encontro entre o psicadelismo e o trance em “Lightning People”. Às vezes parece que Marr quer trazer-nos um mundo extremamente cinematográfico, onde os temas parecem imagens que se movimentam defronte de nós enquanto o som nos prende.
“Rubicon” faz-nos voar até “Blade Runner”, por exemplo. Há até, neste conjunto de canções, espaço para um momento de nostalgia: “Tenement Time” lembra-nos os Joy Division, mas isso é normal, tendo em consideração as influências de juventude do guitarrista.
Em busca da identidade
O livro começa com uma frase quase enigmática: “Cheguei a Tóquio disfarçado de árabe”. Mais à frente, “Canción” de Eduardo Halfon, esclarece-nos: “Nunca tinha estado no Japão. E nunca me tinham solicitado que fosse um escritor libanês. Escritor judeu, sim. Escritor guatemalteco, claro. Escritor latino-americano, com certeza. Escritor centro-americano, cada vez menos. Escritor norte-americano, cada vez mais. Escritor espahol, quando era preferível viajar com esse passaporte. Escritor polaco, numa ocasião, numa livraria de Barcelona que insistia – insiste – em colocar os meus livros na prateleira da literatura polaca. Escritor francês, desde que vivi uns tempos em Paris e alguns ainda supõem que continuo lá. Guardo todos esses disfarces sempre à mão, bem passados a ferro e pendurados no armário”.
Passado o sarcasmo, quem é este mestre dos mil disfarces literários?
É certo que Halfon é guatemalteco e judeu, mas estas primeiras páginas fazem-nos pensar que estamos defronte duma farsa sobre a identidade. Mas “Canción”, na sua brevidade (117 páginas) é sobretudo uma tragédia com centro na violenta e trágica história da Guatemala, com dois personagens principais: o avô de Halfon, de origem libanesa, sequestrado pela guerrilha durante 35 dias em 1967 e Canción, a alcunha de um dos guerrilheiros que o sequestrou e carniceiro de profissão na sua vida anterior.
A novela é, sobretudo, um belo jogo de personagens, tempos e espaços que seguimos com prazer e facilidade, a partir da estadia do escritor em Tóquio. É mais uma vez a forma de Halfon ir em busca do seu passado e da sua identidade e dos costumes que marcam a sua família. Mas também das suas alegrias e tragédias. Poder pertencer a uma das poucas famílias de origem judia que existem na Guatemala faz com que a situação dele e dos familiares ainda seja mais original num país que Halfon descreve como “surrealista”.
Afinal tudo aconteceu na Guatemala no século XX: de golpes de Estado a ditaduras militares ou governos tutelados por militares, guerrilhas, paramilitares, interesses económicos dos Estados Unidos, sequestros e assassinatos, pobreza e uma guerra civil sem fim. Como se a tragédia fizesse parte do ADN do país e ninguém consiga livrá-lo dessa sujidade.
Grande parte da novela descreve o sequestro do avô de Halfon e as consequências que teve na família. E onde se recorda uma figura mítica: Rogelia Cruz, estudante de arquitectura, Miss Guatemala e que depois de se ter aliado à guerrilha viria a aparecer assassinada. Aqui tem-se a noção das intervenções militares americanas para apoiar os monopólios económicos no país, como o da United Fruit Company e que levaram à remoção dos dirigentes democraticamente eleitos do país. Daí a célebre saga das Repúblicas das Bananas. Mas aqui a história social é um pano de fundo, que serve para enquadrar os dilemas pessoais dos personagens e a sua própria intimidade. Este é um belo livro e uma grande história.
Eduardo Halfon, Canción, Quixote, 117 páginas, 2022
A princesa na guerra
Era o fim da guerra em 1945. Isabel de Inglaterra era destacada numa página do “Mundo Gráfico” sob o título “A princesa na guerra”. Na época Isabel, hoje rainha, talvez julgasse estar a ver o início da chegada da paz à Europa após anos de guerra e destruição. E hoje, tantas décadas depois, está a ver como a história se repete como farsa.