Dantes, para um lisboeta, descer a Avenida Almirante Reis era a outra maneira de chegar à Baixa, para compras em lojas de tudo e mais alguma coisa, ou para chegar ao emprego, de escritório, serviços, comércio, ou, mais noite adentro, talvez entre mais novos, para a feliz descida a pé até lugares de convívio e descoberta.

Na volta, no regresso da noite, era um clássico subir em grupo a Avenida que se descera horas antes e parar à porta da fábrica de bolos em Arroios, espreitar pelo corredor, sentir o cheiro e o calor dos fornos e assim sossegar o estômago maltratado com o que foi sendo bebido. Nesse tempo como agora, essa felicidade não era igual para homens e mulheres. Sobretudo se sozinhas, um grau de alerta era e prossegue para elas companhia permanente.

Descer a Avenida Almirante Reis nesses tempos indefinidos era também cruzar com problemas sociais e urbanos, nos Anjos a sopa dos pobres, no Intendente a prostituição, a Rua da Palma a sobreviver só no nome ao passado que já não era, no Martim Moniz a perpétua percepção de que ali nada fazia sentido fosse qual fosse a última requalificação, depressa condenada a degradar-se. Sempre se podia derivar para a Mouraria, contornando decrépitos centros comerciais, ou desaguar, como um canal, na ampla Praça da Figueira, premonição do estuário a ver mais abaixo.

“Calle” em Espanhol significa precisamente canal e “rua” em Português vem de sulco, aliás como a palavra “ruga”. Se Lisboa tivesse rosto, a Almirante Reis seria o seu bigode chinês, ou outra grande ruga a fazer da vida vivida expressão. Lisboa era ali.

Agora, descer a Avenida Almirante Reis continua a ser, com intensidade, o encontro com Lisboa ali, mas é outra Lisboa, onde a ruga não exprime bem rosto. O encontro é com tendas que se sucedem nas arcadas e resguardos à entrada de prédios, cada vez menos dedicados à habitação, tomados para empreendimentos hoteleiros.

A descida pelo passeio, até pela ciclovia, deixa ver a presença que indo de carro ou de metro se vê menos – tendas que são como tentativas de casas, a ocuparem, sem direito legal, chão da avenida. Nem o pudor, que baixaria o olhar, resiste à dureza da presença de uma cadeira de braços ao lado de uma tenda, diante de um banco que serve de mesa, ou à presença de uma pequena boneca exposta num nicho, ou à presença de um vaso e o cuidado dado à planta que nele cresce, ali no parapeito para onde dá a entrada de uma tenda.

Assim, destas presenças, se constrói sentido de casa sem casa. Não renunciar a um mínimo de conforto, mesmo que apenas imaginado, à possibilidade, mesmo que apenas simbólica, de um hábito que era rotina, algum resguardo face aos transeuntes.

Descemos a Almirante Reis e vemos as pessoas que habitam estes lugares precários a lutarem por fazer neles normalidade. Uma mulher que não teria 30 anos sentada num degrau, concentrada nos assuntos que lhe aparecem na tela do seu smartphone. Dois vizinhos de tendas lado a lado a conversarem sobre algum assunto, diante delas, de uma maneira tão cheia de dignidade, como se nenhuma contrariedade os abalasse. A atenção destas tendas é-nos demasiado familiar. Há lençóis e cobertas a arejar, notam-se os cuidados, as horas de os fazer. A pé, sentimos que o chão que pisamos é o mesmo que faz soalho dois metros para dentro.

Estas pessoas talvez tenham empregos e vão trabalhar. Não são pessoas que caíram na condição de sem-abrigo, não são pessoas tomadas pelo infortúnio da degradação psicológica, o alcoolismo ou a droga. São pessoas comuns, que levavam vidas normais, que pagavam renda com os seus salários e que são atingidas pela realidade de o seu salário não chegar para ter casa na cidade de Lisboa ou município algum que permitisse ainda ir trabalhar a Lisboa.

Desde Setembro do ano passado, diz um estudo imobiliário, as rendas subiram na capital mais de 40%, e passam facilmente dos 2000 euros mensais. Actualmente um professor catedrático ou um magistrado que queira pagar uma renda com o seu alto salário tem de aceitar que não lhe sobrará provavelmente nem o salário mínimo nacional para fazer face a todas as demais despesas da sua vida. O que dizer ao empregado de comércio, de escritório de serviços, aqueles que desciam a Almirante Reis para trabalhar em troca de um salário médio? Hoje, o rosto de Lisboa é uma máscara de classe, uma mascarada que dá todos os motivos à luta de classes.

Estes moradores de tendas não vivem um problema do primeiro mundo. Se levassem filhos para estas tentativas de casa, perderiam a sua guarda. Vivem uma violência social que nos devia ser intolerável.

Hoje, descemos a Avenida Almirante Reis e vemos os hotéis novos, a aparecerem quase sempre com aspecto de coisa precipitada, falso brilho, até de logro, a disputar as arcadas com as tendas poucos metros abaixo ou acima. Vemos os portadores de tróleis a sair pelas portas automáticas a verificar por cima do ombro o quão confortavelmente conseguem permanecer indiferentes ao que encontram ali a seu lado.

Este conflito de normalidades devia estarrecer. Mas a quem ao certo?  O cidadão comum, de rosto que não se envergonha e se mostra, rosto público que não baixa o olhar. A Almirante Reis já não é uma ruga. É um golpe no rosto de Lisboa e de quem quer que se sinta.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.