Walter Scheidel é um historiador austríaco, hoje em dia professor em Stanford, com um importante percurso na história antiga, designadamente na história social e económica da Roma antiga. Mas o que lhe trouxe luzes de ribalta além do seu domínio de especialidade foi um instigante livro que publicou em 2017 – “The Great Leveler: Violence and the History of Inequality from the Stone Age to the Twenty-First Century” (A Grande Niveladora: Violência e a História da Desigualdade desde a Idade da Pedra até ao Século XXI).

A sua tese principal, controversa, é a de que ao longo dos tempos os maiores niveladores sociais, que realmente corrigiram desigualdades acumuladas, foram sempre um de quatro: grandes epidemias, colapsos de Estados, guerras que impliquem mobilizações em massa, movimentos revolucionários que reviram a ordem social.

Uma peça do Washington Post, escrita a propósito do livro de Scheidel, resume a tese com exemplos certeiros: a peste bubónica, a Segunda Guerra Mundial e a queda do Império Romano, todos estes acontecimentos diminuíram as desigualdades. Para Scheidel, a história mostra que a desigualdade nunca foi contida ou vencida por meios pacíficos.

A tese arrepia mas faz sentido, sobretudo se pensarmos nas condições que tornam possível o crescimento das desigualdades. Em grande medida, estas são o resultado de processos de acumulação em contextos de crescimento económico e de paz. Pressupõem um tempo estável que corra sem fissuras, protegido por leis que garantam a continuidade e os direitos que dela decorrem. O que a violência da guerra ou da revolução, ou ainda a catástrofe natural maciça fazem é romper essa continuidade.

A ironia amarga é que estes “great levelers”, que estão cada vez mais ao alcance de mãos humanas, encontram, apesar de serem absolutamente destrutivos, vontades, e tantas mais quanto maiores forem as desigualdades. Foi assim nas primeiras décadas do século XX e é crucial que se conceba que torne a ser assim se continuarmos a agravar o fosso de oportunidades nas sociedades contemporâneas.

O ponto a reter aqui é menos que a violência tem sido historicamente o grande nivelador, mas que o grande desnivelamento tem sido a fonte e o terreno da violência de massas. Não há aqui uma alternativa entre males, mas dois males que se alimentaram reciprocamente num ciclo que com as lentes de uma escala histórica adequada se mostra verdadeiramente infernal. A alternativa tem de ser, pois, à própria história passada.

Mas há mais. Nos últimos anos Noam Chomsky tem chamado a atenção para os riscos de uma escalada nuclear que levasse à nossa extinção súbita. Não é um anacronismo de quem viveu a explosão de Hiroshima com a mesma idade com que vimos cair o muro de Berlim. Pelo contrário, tal como o terrorismo é uma forma de guerra que conseguiu ameaçar o que exércitos de superpotências não conseguem defender, também as armas nucleares tenderão a ser, em virtude da banalização da tecnologia que as pode fabricar, tremendamente menos controladas e mais perigosas.

E bem sabemos hoje que não fora alguma sorte e alguma desobediência e o desastre já poderia ter tido lugar. Provavelmente sem que ninguém lhe sobrevivesse. Diferente do século XX, o nosso já não precisa de massas para exercer violência de massas.

Em suma, a desigualdade tem uma história mais antiga do que a do capitalismo industrial e tem um protagonismo na história muito mais abrangente e destrutivo do que talvez se suspeitaria. E o que vale para o passado vale para os dias de hoje. Se não for detido, com políticas pacíficas, o crescimento ilimitado das desigualdades, apresentadas como se fossem naturais, inevitáveis e, portanto, legítimas, tornará irrelevantes as lutas sociais que, num quadro de Estados de direito, acabavam por dar lugar a negociações e cedências a reivindicações justas.

A supressão de oportunidades de muitos pela ampliação exacerbada das de muito poucos, maior herança que a sociedade deixa às gerações seguintes, é um barril de pólvora global. As evidências passadas de Scheidel são as piores. Mas ninguém escreve a história futura por nós. E um dado novo será nela cada vez mais incontornável: se uma história pacífica da igualdade não prevalecer também pode não ser uma história violenta da igualdade a continuar. Simplesmente pode não haver mais história.