A relação entre a crise pandémica e o agravamento da pobreza e da desigualdade são cada vez mais evidentes. O relatório sobre a pobreza, divulgado este mês pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, põe o dedo na ferida ao demonstrar que, considerando a população acima dos 18 anos, as situações de pobreza atingem atualmente um terço daqueles que têm um emprego estável. Estes números são inaceitáveis para uma economia que se intitula desenvolvida.
Se o aumento do desemprego é apontado com um dos fatores mais decisivos do crescimento da pobreza, o relatório torna evidente que, em Portugal, ter emprego não é condição suficiente para escapar a esta teia. Antecipa-se assim que o crescimento económico português, que o último World Economic Outlook projeta vir a situar-se em 3,9% em 2021 e 4,8% em 2022, poderá não conseguir ter mais do que o efeito de um sopro na erradicação da pobreza.
A taxa de pobreza em Portugal sofreu um aumento significativo após a crise financeira, que se inverteu a partir de 2015. Quando a crise pandémica se instalou, a situação da economia portuguesa não era, no entanto, exatamente a mesma da crise anterior.
De acordo com a Confederação Europeia de Sindicatos, em 2020 os pacotes salariais dos portugueses permaneciam, em média, 4% mais baixos do que 10 anos antes. Ora, na sequência de uma crise, a persistência de salários baixos e empregos precários ocorre sobretudo entre os mais pobres, levando a que se instalem e acentuem bolsas de pobreza.
Terá sido assim que, em 2018, segundo o relatório da Fundação, 17,2% da população portuguesa estava abaixo do limiar da pobreza (501,2 euros mensais enquanto o salário mínimo estava fixado em 600 euros), sendo esta proporção ainda mais elevada entre crianças e jovens.
É aliás particularmente preocupante constatar que em Portugal a maior taxa de pobreza incide sobre agregados familiares onde há crianças. Pobreza entre crianças e jovens significa más condições de habitabilidade e menor acesso a educação e saúde no período mais crítico das suas vidas e, regra geral, reflete-se uma privação ad infinitum do acesso a melhores condições de vida. Mais, implica perpetuar aquilo que já é de si um padrão conhecido: a reprodução intergeracional da pobreza.
Se a pobreza é resultado de salários baixos combinados com sistemas de Segurança Social débeis (e em Portugal os benefícios sociais excluindo pensões estão claramente abaixo da média europeia), é também e sobretudo um resultado da precariedade perante o mercado de trabalho.
Em situação normal, não possuir um vínculo laboral formal e estável cria incerteza, impede planificar e tomar decisões de médio e longo prazo que permitam inverter o círculo vicioso de baixo rendimento e assim quebrar as amarras com a situação de pobreza. Em situação de crise, implica somar ao grupo de trabalhadores imediatamente dispensáveis.
A dimensão da economia informal na sociedade portuguesa, muito ligada aos setores mais atingidos pela pandemia, como o turismo, mas também a setores onde a qualificação é um requisito, de que são exemplo os arquitetos, tem empolado as situações de pobreza e desigualdade.
No atual contexto, retirou a muitos a possibilidade de receberem uma prestação social proporcional ao salário que recebiam, ficando fora do lay-off simplificado. A desmultiplicação do tipo de apoios sociais criados pelo Governo para tentar cobrir todas as situações de quebra de rendimento foi disto mesmo um sintoma.
Um mercado de trabalho informal permite, em momentos de expansão, um rendimento mais alto, pela evasão às contribuições obrigatórias para o sistema de Segurança Social, mas esta vantagem é ilusória, desmoronando-se e invertendo-se rapidamente à primeira contrariedade, como as crises recentes puderam ilustrar.
A fuga às contribuições sociais repercute-se ainda a prazo no valor das pensões a auferir por estes contribuintes casuais, concorrendo duplamente para engrossarem a taxa de pobreza, desta feita na qualidade de reformados.
Se o mercado de trabalho está invariavelmente no centro do furacão da pobreza, um mercado de trabalho robusto e dinâmico é também um fator de sustentação do crescimento. Não será um acaso que a perda de dinamismo económico e o aumento da desigualdade das últimas décadas nas economias desenvolvidas coincide com a degradação das condições de trabalho e com a perda de rendimentos salariais. Uma sociedade desenvolvida deverá eleger a erradicação da pobreza como um dos seus objetivos fundamentais.