Acho que todos ainda temos frescas na memória as imagens das diferentes manifestações de contestação ao governo Passos Coelho. Os estivadores, com salários e condições muitíssimo superiores às do português médio, faziam parar o país, ameaçavam fisicamente quem se lhes opusesse, tentavam sitiar o Parlamento português. Os reformados de luxo, com reformas infinitamente maiores que as da esmagadora maioria do Povo, formaram a APRE e não saíam da rua, todos bem sujeitos à trela oportunista da Dra. Rosário Gama.
Os professores e os funcionários públicos, pelas vozes de comando de Ana Avoila e Mário Nogueira, saltitavam entre greves e manifes, provocando tanto caos quanto lhes era possível na Educação, na Saúde, nos Serviços que o Estado deveria garantir aos cidadãos. Jovens licenciados em dramaturgia e pós-graduados em tradição oral no Reino do Butão exigiam a Passos um emprego garantido por imperativo constitucional. Tudo serviu para criar um clima de contestação que induzisse instabilidade social e obstaculização ao governo. Estas hordas bem orquestradas davam pelo nome de “indignados”.
Nesses tempos dos indignados, o Parlamento foi ameaçado, os deputados chegaram a saír sob escolta policial, as instituições que representam e asseguram a Democracia estiveram sob ameaça permanente. E a esquerda e as esquerdas radicais conviveram sem pudor com esta instabilidade constante, compreendendo candidamente os maiores desvarios. Lembro-me de ter sido invectivado por muitos bem-pensantes por ter chamado arruaceiros ou terroristas urbanos aos selvagens que promoviam o caos nas ruas de cara tapada pela máscara do Guy Fawkes.
Nos cartazes dos tais ajuntamentos, liam-se pérolas como “Passos assassino!”, “Emigra tu, meu cabrão!”, “Morte aos neo-liberais!”, “Passos és ladrão, estás-nos a roubar o pão!”. Por entre cartazes deste teor, passeavam-se invariavelmente Catarina, Mortágua e comandita, os comunistas destacados pelo Comité Central e alguns socialistas escolhidos a dedo.
Esta “rua” violenta, agressiva, paralizante, intimidatória, tinha donos muito bem identificados. De modo mais ou menos evidente, sucumbiam à vaidade de aqui e ali mostrar quem é que mandava. A imprensa adorava, transformando em multidão qualquer ajuntamento superior a 20 gatos pingados; a dada altura já nem eram necessárias as camionetas dos municípios comunistas cheias de velhinhos ao engano.
Curiosamente, Passos, com a sua teimosia, resistiu, seguiu em frente e venceu as eleições. Ficámos a saber da verdade e representatividade do “povo indignado” e da “rua”.
Ao alcandorar-se ao poder, Costa, com a sua inédita geringonça, garantiu o fim da “rua”. Arménio Carlos articula previamente o pouco que diz, Avoila e Nogueira estão afónicos e desaparecidos em parte incerta, a Dra. Rosário Gama voltou a pôr umas confortáveis pantufas cor-de-rosa, os jovens dramaturgos voltaram às sedes e grupos de trabalho, e alguns provavelmente a gabinetes do Estado, os estivadores estivam alegremente e a Carris circula sem sobressalto. Os Anónimos voltaram para o buraco de onde tinham saído e as máscaras do Fawkes aguardam pelo regresso da direita um dia.
Há, contudo, um problema nesta equação, que Costa e os seus apaniguados julgavam útil, instrumental, perfeita. A falha foi o uso abusivo do nome do Povo. Esta repetição mentirosa levou o Povo a compreender as possibilidades de eficácia da sua mobilização.
O Povo verdadeiro não se mobiliza por inventonas, engenharia de desinformação ou arrebanhamento sindical, mas indigna-se quando a dignidade é desprezada, quando a decência mínima é espezinhada, quando a alma do país é aviltada. Foi o que Costa, um beto lisboeta, com desprezo e aversão ao Povo real não compreendeu. Foi o que Marcelo Rebelo de Sousa, também um beto lisboeta, mas com profunda simpatia, apego e respeito pelo Povo, compreendeu na perfeição. Em jeito de caracterização social, ficámos a saber que entre os betos, há os de mau carácter e os de bons princípios.
As manifestações espontâneas do passado fim-de-semana foram uma novidade e uma lufada de ar fresco. O Povo verdadeiro, pouco dado a estas coisas, habituado a vê-las como um grande teatro comuno-sindical, decidiu que bastava, e saiu à rua. Não havia cartazes violentos, palavras de ordem estudadas e testadas, afinação profissional. Não se viam camionetas, comboios organizados, gente paga para o efeito. Não havia maestros, nem primeira linha de notáveis. Havia uma saudável desordem, um fantástico amadorismo, uma enorme tolerância com os agitadores estratégicamente colocados, apesar das escaramuças de Lisboa.
Sim, foram milhares de pessoas por todo o país, apesar da falta de vergonha com que alguma imprensa tentou esvaziar o incontornável. Foi um grito de revolta contra um Governo e o seu primeiro-ministro incompetente, maquiavélico, distante, profundamente insensível. Costa maltratou os Portugueses como não havia memória de alguém o ter feito, desprezando-os, aviltando-os no momento da sua dor mais profunda, do seu luto mais sentido. Onde se exigia um humilde pedido de desculpas pela óbvia responsabilidade na tragédia, Costa usou de uma soberba gélida e insultuosa, revelação de todo um carácter.
É tudo isto que cada partido dirá se apoia ou reprova ao votar a Moção de Censura. É a decisão entre ser cúmplice de Costa e de tudo o que faz, ou denunciar a sua absoluta incapacidade e indignidade para o cargo, exigindo a sua saída.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.