Este é daqueles temas sobre o qual me apetece sempre escrever. Na última semana antes das eleições presidenciais, marcada por debates pouco ricos em novidade e quase consensuais no que concerne aos grandes temas sociais, é através da arte e da ciência que repenso os temas políticos. A arte estará sempre engajada a um propósito sociopolítico? Creio que não. A fruição estética pelo simples usufruto do belo também é desejável. Contudo, em tempos marcados pela incerteza (crises económicas, um capitalismo desregrado, o terrorismo a bater a todas as portas), é expetável que se regresse a uma arte de significado político e social.
Dessa reflexão fizeram parte três momentos artísticos e uma leitura científica a partir da arte. Começo por ordem cronológica do meu contacto. O primeiro evento, uma peça artística intitulada “Viagem até Pina Bausch”, apresentada na galeria O’Culto. Esta peça começa por ser um filme documentário que se transformou em instalação para se tornar em peça de teatro. Viajamos de comboio. Supostamente procura-se Pina Bausch. Mas há um engano e há um desencontro. Ao longo da viagem, sabemos que a bailarina e coreógrafa esteve na Argentina, no tempo da ditadura e no tempo em que este país ganhou o Mundial. Este é o mote para uma discussão política e cultural. Não saberia Pina Bausch que na Argentina havia uma ditadura feroz? Teria esta ditadura beneficiado da complacência de alguns artistas?
O segundo momento, uma peça de teatro, intitulada “Tragédia Otimista”, em cena no Teatro Joaquim Benite, celebrando o debate ideológico entre anarquistas e comunistas durante a revolução bolchevique na Rússia e a respetiva guerra civil. Como todas as tragédias, não é uma peça fácil. Porém, habilmente o encenador trá-la para a realidade portuguesa. São estabelecidas pontes com a Revolução do 25 de abril em Portugal (os cravos e a música levam-nos até lá) e duas personagens mantêm um diálogo com o público, alertando para a necessidade de ponderar o que ali se passa. Entre espetadores insatisfeitos e críticos previsíveis, o público alivia a tensão de uma tragédia que afirma os valores da revolução. Esta aproximação ao público constitui, indubitavelmente, uma tentativa de quase força-lo a pensar sobre os factos apresentados.
O terceiro episódio: o livro de Camilo Castelo Branco, “O que fazem mulheres”, editado pela Guerra e Paz na sua versão original. Neste livro, o autor dialoga com o leitor e, sobretudo, com a leitora. Dá-lhe liberdade de colocar um dos capítulos onde o leitor(a) quiser. Inclui um capítulo fechado porque é melhor que não seja lido. Com humor e muita sagacidade, Camilo Castelo Branco constrói uma crítica social, onde se discute se as mulheres devem ou não ler “novelas” e, claro, o matrimónio por interesse de homens e mulheres. O leitor acompanha o narrador e deixa-se embrenhar na obra, sem dar por isso.
O quarto e último momento: a leitura do livro “War Crimes, Atrocity, and Justice” (Crimes de Guerra, Atrocidade e Justiça, tradução minha), de Michael Shapiro, editado pela Routledge. Partindo da literatura e cinema, o autor constrói uma análise política dos factos ligados aos crimes de guerra, declarando como seu objetivo encontrar uma “justiça literária” na ausência de uma “justiça legal”. Fazendo a ponte entre arte e política, o autor põe a nu questões apagadas dos relatórios oficiais sobre os grandes dramas humanitários atuais. Arte e ciência são então os discursos que explicam aquilo que a política não conseguiu ou não quis dizer.
O que têm em comum estas quatro obras, tão díspares entre si, para além de rodarem em torno de factos políticos e sociais? O diálogo entre quem produz a obra e quem usufrui. Neste diálogo, dá-se ao espetador ou ao leitor a possibilidade de pensar com quem produz a obra. Afinal não será este o papel de toda a tarde? Espoletar em nós a vontade de refletir e descobrir novos caminhos?
Cátia Miriam Costa
Investigadora do Centro de Estudos Internacionais, ISCTE – IUL