Quando analisamos o setor automóvel, existe uma tendência generalizada — e persistente — de se avaliar a sua performance apenas com base na evolução das vendas de viaturas novas. A cada ano, os títulos repetem-se: “o mercado cresceu”, “o mercado caiu”, quase sempre referindo exclusivamente o volume de matrículas novas. Este foco é, contudo, redutor. Estamos, por assim dizer, a olhar apenas para a árvore e a ignorar a floresta.
Tomemos como exemplo o ano de 2024. O mercado cresceu 5%, mas manteve-se ainda assim abaixo dos valores de 2019 – e essa comparação tornou-se quase automática. Sim, as vendas de ligeiros novos ficaram 7,7% aquém do pré-pandemia. Mas será isso, por si só, suficiente para perceber o que está verdadeiramente a acontecer?
Se olharmos para a floresta – ou seja, para o número total de viaturas que anualmente entram no parque automóvel nacional, somando viaturas novas e usadas importadas – a perspetiva muda significativamente. Em 2019, o parque automóvel nacional cresceu 341 mil viaturas. Em 2023, esse número subiu para 349 mil. E em 2024 ultrapassou as 362 mil. Ou seja, apesar de as vendas de novos estarem abaixo do patamar pré-Covid, o parque automóvel tem vindo a crescer de forma sustentada.
A explicação para esta dinâmica está, em grande parte, na explosão das importações de viaturas usadas. Entre 2010 e 2020, estas rondavam as 50 a 60 mil unidades por ano. A partir de 2022, ultrapassaram as 100 mil — e têm-se mantido acima desse limiar desde então.
Este fenómeno tem causas conjunturais e estruturais. As conjunturais resultaram da denominada crise dos semicondutores no pós-Covid, que limitou fortemente a produção de viaturas novas entre 2021 e 2023, criando escassez e provocando um aumento generalizado dos preços. Muitos consumidores viraram-se, assim, para o mercado de usados como solução óbvia.
Mas há também causas mais profundas. A aposta acelerada dos fabricantes na eletrificação — impulsionada pelas metas ambientais da União Europeia, como a proibição de venda de veículos com motor de combustão a partir de 2035 — tem vindo a reduzir a oferta de motorizações convencionais, sobretudo diesel e gasolina.
Esta transformação impacta de forma particular os segmentos médios e médio-baixo, onde o preço e a adequação ao estilo de vida continuam a ser fatores decisivos. Muitos consumidores destes segmentos ainda não estão preparados, nem do ponto de vista económico nem prático, para aderir à mobilidade elétrica. Perante uma oferta de viaturas novas, desajustada às suas reais necessidades, recorrem a soluções disponíveis no mercado de usados – sendo os operadores deste segmento motivados a procurar fora do país, através da importação, as viaturas que o mercado nacional já não oferece
Um exemplo claro deste desajuste é o caso dos veículos diesel: em 2024, representaram menos de 10% das vendas de viaturas novas em Portugal, mas corresponderam a mais de 50% das viaturas usadas importadas. A oferta nacional, neste caso, deixou simplesmente de acompanhar a realidade da procura.
Em forma de conclusão, julgo que podemos afirmar que se queremos compreender e o mercado e as suas dinâmicas, não podemos continuar a olhar apenas para a árvore. É fundamental termos a capacidade de olhar para toda a floresta.