O confinamento de grande parte das populações do mundo desenvolvido na sequência da pandemia da Covid-19, forçou uma significativa parte do sector empresarial a procurar alternativas que permitissem manter níveis de serviço suficientes para continuar a operar. Esta conjugação de fatores extraordinários provocou uma visível rutura na forma como se percecionou a prática de trabalho remoto (ou teletrabalho) e deu palco a uma mudança que estava mais associada a determinadas culturas empresariais em novos sectores, sobretudo muito viradas para gerações mais novas e melhor preparadas para lidar com soluções mais inovadoras em termos de ecossistema laboral.

Numa altura em que o regresso ao trabalho se encontra muito condicionado pelo facto de ainda não existir vacina ou tratamento de grande eficácia, e pelos receios relacionados com o potencial de uma segunda vaga do novo coronavírus, o trabalho remoto aparenta ser uma das alterações que pode ter vindo para ficar. Ou seja, é bem provável que os padrões laborais possam conhecer uma evolução para uma normalidade do teletrabalho, pelo menos em regime parcial. Esta nova normalidade surgiu em resultado da necessidade de controlar a frente sanitária, mas pode encontrar popularidade nos custos para as empresas, que assim necessitarão de ter menores áreas de escritórios. Estrutural poderá também ser o efeito migratório das grandes cidades para outras mais pequenas e menos urbanas das periferias, onde os custos menores com a habitação e o enfoque na qualidade de vida familiar podem constituir argumentos decisivos.

A prática do trabalho remoto deverá persistir e tornar-se mais definitivo…

As evidências sugerem que o confinamento provocado pelo surto de Covid-19 representou um evento acelerador daquela que era já uma tendência em curso. Na última década, como pode ser constatado em vários inquéritos, nomeadamente aquele que foi produzido pela Flexjobs & Global Workplace Analytics e que evidencia que nos últimos 12 anos a implementação das práticas de trabalho remoto cresceu nos Estados Unidos cerca de 159%, abarcando perto de 4,7 milhões de trabalhadores norte-americanos, isto é, 3,4% da população da maior economia mundial.

Em muitos outros mercados desenvolvidos, o peso da solução é ainda mais evidente, com alguns países europeus como a Irlanda (20%), França (21%), Bélgica (23%), Reino Unido (25%), Dinamarca (27%) e Suécia (34%), de acordo dados de 2018 do Eurostat a registarem taxas de participação dos trabalhadores em regime remoto de forma esporádica ou frequente acima de 20%. Mesmo Portugal apresentava à data do estudo uma tendência bastante elucidativa, com cerca de 15% da população ativa envolvida de forma casual ou regular em soluções de trabalho remoto. No global da zona euro esta mesma variável rondaria os 13%. Nos últimos meses, vários observadores sugerem que o recurso ao teletrabalho terá aumentado num intervalo de 40% a 50% nas economias desenvolvidas.

É certo que nem todos os sectores podem ser convertidos em trabalho remoto, e que uma parte significativa da economia fica de fora do universo de profissões elegíveis – cerca de 60% dos postos de trabalho dos Estados Unidos não são possíveis de replicar remotamente, de acordo com trabalho de análise recente do investigador e economista da Universidade de Chicago Brent Neiman sobre esta temática. Contudo, no que concerne aos sectores e postos de trabalho elegíveis (com destaque para funções de gestão, consultoria, banca e sector financeiro, áreas de tecnologias de informação, mas também funções comerciais e negócios de venda online) a tendência poderá ter vindo para ficar.

Desde logo porque a solução tem vantagens para as empresas empregadoras e funcionários. Em termos dos ganhos do lado dos empregadores, estes economizam no custo de edifícios, serviços públicos e infraestrutura, enquanto os funcionários economizam custos e tempo de deslocação, podendo passar mais tempo com a família e melhorar a sua qualidade de vida. Embora possa haver alguns custos negativos decorrentes, por exemplo, da interação interna das equipas que podem resultar em quebras de produtividade, muitas empresas parecem dispostas a explorar a solução de incorporar o trabalho remoto.

… mas quiçá numa solução de regime parcial

É provável, contudo, que a implementação seja – pelo menos inicialmente – mais assente num regime parcial, uma espécie de solução de teletrabalho de meio-tempo, e não de tempo integral. Recuperando de novo os dados do Eurostat sobre a penetração dos hábitos de trabalho remoto na Europa, verificamos que quando cingimos a análise ao número de profissionais que utilizam o teletrabalho como solução standard, estes representam apenas cerca de 5% da população ativa. Mesmo em países como a Suécia, onde a aceitação do teletrabalho é muito elevada, apenas 5% o faz em regime integral. Na realidade, existe um fator de interação humana que ainda é valorizado quer pelos empregadores, quer pelos próprios trabalhadores.

Por um lado, as interações sociais e a manutenção da rede de contactos são consideradas importantes em muitas funções profissionais; por outro lado, profissionais com agregados familiares com crianças em idades jovens, ou com progenitores em idade avançada, e que provavelmente podem considerar que o escritório oferece um melhor ambiente de trabalho, reconhecem que a flexibilidade do trabalho remoto pode oferecer vantagens no que diz respeito ao apoio que podem dar em termos de proximidade familiar. Por fim, o próprio equilíbrio emocional que pode advir de um formato de trabalho que confira flexibilidade, mas não assente no isolamento social, oferece uma combinação de maior valor acrescentado para muitos.

Estas inferências apontam um dos desafios que as empresas que queiram implementar no futuro maior penetração do trabalho remoto terão de enfrentar, que é o de entender as situações em que os seus colaboradores consideram vantajoso trabalhar remotamente, e aquelas em que isso não acontece. Ou seja, no curto prazo é provável que os escritórios continuem a existir, mas utilizados de uma nova forma, mais partilhada, que permita às empresas obterem poupanças com infraestrutura física e logística.

Novos hábitos tenderão a exercer menor pressão sobre os grandes centros urbanos

Após uma maior normalização dos hábitos pós-pandemia, certamente que o número de adeptos de uma proporção de trabalho remoto tenderá a ser superior àquele que analisámos aqui neste ensaio. O registo elevado do número de profissionais que estão rapidamente a adaptar-se a novos hábitos, conjugado com o investimento que as empresas fizeram em tecnologia e adaptação produtiva para este ciclo, criam condições para as estatísticas disponíveis registarem uma subida significativa. Ou seja, é provável que exista um aumento estrutural e permanente do trabalho remoto, sobretudo no que diz respeito aos que o farão em regime parcial como formato base.

Não seria descabido considerar, a título de extrapolação, que os números atuais relativos aos países mais adaptados (ex. Suécia) possam ser o ‘novo normal’, e que o teletrabalho no seu todo possa valer cerca de um terço em média no espaço das economias mais desenvolvidas, como é o caso dos países europeus. Num cenário destes, isso implicaria menor comutabilidade no que respeita ao acesso aos grandes centros urbanos, o que pode potenciar relevantes alterações no papel das grandes cidades durante os próximos anos.

Confrontados com condições de trabalho mais flexíveis que permitem, pelo menos de forma parcial, utilizar a sua área de habitação como escritório, ao qual acresce a uma perceção relacionada com os riscos de novas pandemias similares, em que os vírus poderão propagar-se mais rapidamente em zonas de maior densidade populacional – e no caso da Covid-19, as áreas mais críticas têm sido as cidades de grande densidade e dimensão –, não será surpresa que muitos dos profissionais que podem trabalhar remotamente ponderem deixar de viver no epicentro de grande áreas urbanas.

O crescimento do trabalho remoto e a localização da habitação

É certo que muitos dos apelos das grandes cidades não estão exclusivamente relacionados com a proximidade do trabalho, e sem dúvida que continuarão a ter o seu valor decisivo no processo de escolha da residência. Mas a localização da habitação é seguramente uma variável relevante, em conjunto com outras duas variáveis chave, como são o esforço financeiro e opções existentes que ofereçam condições e infraestruturas culturais, desportivas e de lazer de qualidade.

A interceção destes três equilíbrios pode alterar-se significativamente à medida que a melhoria das condições de trabalho remoto forem ganhando espaço nos próximos anos, ao ponto de influenciar a decisão de muitas famílias de se deslocarem das grandes cidades para cidades mais pequenas das periferias, onde podem beneficiar de preços bastante mais acessíveis na habitação (no caso da área metropolitana de Lisboa podem chegar a ser cerca de entre três a cinco vezes menores), e desfrutar de infraestruturas de qualidade. Por outro lado, podem também permitir uma maior proximidade aos ascendentes em idade avançada, que a mobilidade dos dias de hoje afastou, muitas vezes por razões de exigência e carreira profissional.

É certo que as grandes cidades vão continuar a ser muito apelativas, sobretudo pelo que oferecem em termos de condições e lazer, segurança, cultura e proximidade das comodidades modernas. Mas os incentivos para a mudança tornar-se-ão muito visíveis em termos financeiros, sobretudo para os agregados familiares com filhos e/ou ascendentes a cargo, acrescidos da flexibilidade laboral que permitirá poupanças financeiras adicionais relacionadas com transportes e alimentação, assim como benefícios de qualidade de vida.

Bastará uma pequena alteração no comportamento deste grupo alvo em termos de condições de teletrabalho (por exemplo trabalhar em casa dois ou três dias por semana), para que se possa registar uma alteração na deslocação migratória das grandes cidades para cidades mais pequenas e periféricas, que serão as que podem vir a recolher maiores benefícios, dado terem, em muitos casos, a ainda necessária proximidade e transportes para os grandes centros urbanos.

‘Bottoms up’: a ascensão das pequenas cidades, motor de equidade e investimento

As mudanças e novos hábitos resultantes do trabalho remoto terão implicações permanentes na vida das famílias nos países mais desenvolvidos, e a Europa e Portugal não serão exceção. O modelo do trabalho à distância, mesmo que na solução parcial – a mais provável – traz benefícios e poderá influenciar o modo de vida de até um terço da população ativa na Europa, o que representaria, no caso nacional, cerca de um milhão de postos de trabalho. Esta alteração deverá servir de incentivo à migração de famílias para cidades mais periféricas, mas também mais acessíveis financeiramente. As implicações económicas desta tendência são relevantes, pois isto permitirá desde logo uma maior equidade e diversificação em termos de crescimento económico regional.

Em segundo lugar, porque pode criar um clima de competitividade entre estas pequenas cidades para atrair habitantes que, por sua vez, poderá incentivar investimento das autarquias no sentido de corresponder a uma oferta de maior qualidade de vida. Estas respostas deverão chegar em formato de investimento urbano “verde” – mais zonas cicláveis e de lazer, menos poluição, mais ordenamento – e também em termos de segurança e proteção civil, e ainda infraestruturas de saúde e culturais de qualidade.

Por último, o teletrabalho poderá bem ser uma espécie de revolução silenciosa a nível laboral, com potencial para devolver equilíbrios na sociedade, seja em termos de proximidade entre a família e seja entre as pequenas comunidades das periferias, que se poderão tornar numa nova centralidade.