Hannah Arendt, uma jornalista judia enviada pelo New Yorker para cobrir o julgamento de Adolf Eichmann, o executor da “Solução Final”, operação que perseguiu e aniquilou mais de seis milhões de judeus, afirmou que “o maior mal é aquele que não é cometido por ninguém”. Dizia-o no contexto da repetida invocação, por parte de Eichmann, de que mais não fizera que obedecer a ordens, ordens essas que se perdiam na hierarquia militar nazi já desaparecida, pelo que “ninguém” poderia ser responsabilizado pelo ocorrido e certamente não ele próprio.

Ao fazê-lo, Eichmann retirava-se assim da cadeia de comando, como se não fosse sua obrigação moral não executar ordens tão obviamente iníquas. São pessoas assim, que se recusam a comportar-se como pessoas – da nossa condição humana faz parte o sentido inato do bem e do mal e o sentimento da compaixão –, que “banalizam o mal”.

Arendt foi subsequentemente atacada pois afirmou que Eichmann não teria levado a cabo tamanho massacre sem a conivência de alguns líderes judeus, embora aceitasse que a resistência desses líderes era impossível. Porém, “entre a resistência e a cooperação há certamente alguma coisa que poderia ter sido feita e, nesse sentido, os líderes judeus poderiam ter tido um comportamento diferente”. E é a sua capitulação perante o Mal, bem como da elegante sociedade alemã e europeia da época, que culmina no horror que foi o Holocausto e na aceitação surda, como se inevitável fosse, do que então aconteceu.

Este fim de semana haverá eleições no Brasil. A conivência de muita sociedade esclarecida brasileira e de fortíssimos grupos de influência – parte importante do movimento evangélico, os grandes fazendeiros e os que desejam passar tudo a fio de espada (as bancadas da Bíblia, do Boi e da Bala) – levaram a que muitas pessoas de bem facilitassem a eleição de Jair Bolsonaro. Em suma, a lógica de que é necessário mudar, fugir da corrupção do PT, dos partidos e políticos, acabar com os 63.000 homicídios anuais, com os milhões de assaltos de rua, com as 600.000 violações não reportadas, com a falência geral dos serviços públicos, acabar com tudo ou quase tudo, como que proclamando “morra Sansão e todos quantos aqui estão”.

Perante isto, o mal de Bolsonaro é menor, logo é melhor. Há corrupção em empresas públicas? Privatizem-se. Precisamos de mais exportações? Cultive-se a Amazónia. O Supremo decide contra nós? Manda-se para lá um soldado e um cabo. Há assaltos nas ruas? Arme-se a população. Foi apanhado em flagrante? Mate-se in situ.

Mas, entre a resistência inútil – Bolsonaro já ganhou – e a cooperação, há um caminho que os brasileiros podem trilhar e que o testemunho de Hannah Arendt nos relembra. A partir de agora, nos tribunais, na comunicação social, nos fóruns públicos e privados, na rua, no trabalho e no quotidiano, começa a luta cívica pela reposição da decência humana, aquela que deve impelir cada um de nós, todos os dias, a exercer a nossa condição humana, aquela que distingue entre o Bem e o Mal, aquela que sente compaixão pelo perseguido, pelo diferente, pelo desapossado ou, simplesmente, pelo outro. É assim que se evita a “banalidade do mal”.