Ou os insondáveis caminhos da Segurança Social

(Escrevo estas linhas em plena noite eleitoral. Independentemente de tudo, não posso deixar de notar a perplexidade com, apesar de tudo, os números da abstenção. A cidadania não é, apenas, um direito mas, na sua essência, um dever que se exerce, mais do que pelo voto, todos os dias. Votar é, apenas, o corolário da cidadania mas, convenhamos, é o mais fácil de executar. Um povo que se demite de si próprio é um povo condenado a fazer de fantoche, maravilhado com as migalhas que caem da mesa.)

Logo no início da licenciatura, os estudantes de direito são compelidos a decorar uma velha máxima que, muitas vezes, será contrariada ao longo da sua vida: o Estado é, alegadamente, uma pessoa de bem. Todo o nosso edifício jurídico é construído sobre este aforismo, sendo que, a espaços, se fala nos abusos do sistema mas raramente se toca nos casos em que o sistema abusa de nós.

Na verdade, o Estado, em especial na sua vertente mais essencial, a do estado-providência, não se porta, por via de regra, enquanto tal e não cumpre os ditames mais básicos da boa fé. A falta de fiscalização quanto às situações de fraude é compensada pelo nivelamento por baixo de todos os utentes, em especial justamente em relação aos que, por estarem mais fragilizados, careciam do apoio que não têm. Desde cartas propositadamente indecifráveis e enviadas em correio simples, com datas muito anteriores às do seu efectivo envio, dirigidas a destinatários que acabam por ver indeferidas as suas pretensões por não perceberem o que lhes é solicitado, a Juntas Médicas onde os médicos que as compõem não têm a especialidade exigida para aferir do grau de incapacidade, passando por prestações de desemprego com intenção de indeferimento ilícitas (sob a alegação de que não é involuntário), a Segurança Social transformou-se num pântano, onde apenas os utilizadores por sistema, em muitos casos justamente aqueles que abusam dele, conseguem navegar.

Mais do que aferir da conformidade da pretensão e do efectivo direito de quem se lhe dirige, do que se trata ali é de criar os entorses necessários a que a pretensão, seja ela qual for, caia por si. Dito de outra forma, a Segurança Social esqueceu-se que existe para o que agora chama de utentes e os burocratas, de mangas de alpaca, que a tomaram de assalto fazem por ignorar que são pagos, também com os nossos impostos, para que confiram a protecção possível quando ela é admissível.

Kafka um dia escreveu que “desde que alberguemos uma única vez o mal, este não volta a dar-se ao trabalho de pedir que lhe concedamos a nossa confiança”. O mal paira, muitas vezes, na Segurança Social. Compete-nos a todos não lhe franquear a porta.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.