O lançamento da blockchain, já no longínquo ano de 2008, criou o primeiro criptoactivo, a Bitcoin: uma reserva de valor que, apesar de funcionar à margem da economia regulada, não deixa de ver o seu valor legalmente reconhecido.

Desde então, o desenvolvimento da auto-execução ecossistémica com este tipo tecnologia tem criado uma profusão de produtos quasi-financeiros na #DeFi. No entanto, toda essa inovação tem ficado essencialmente do lado de lá do perímetro da economia regulada. É que o anonimato das chaves criptográficas que representam os criptoactivos não tem convivido bem com as leis da maioria das jurisdições.

Não obstante, a característica auto-executável da tecnologia blockchain permite transaccionar a detenção dos criptoactivos, e até a execução dos direitos digitais que estes representem, sem obrigar à intervenção de nenhuma organização regulada, o que torna incontornável a existência dos dois mundos em paralelo. O que vai ditar o que pertence à economia regulada, e o que não, é a lei que irá definir como vão ser tratadas as transacções e a identificação jurídica dos intervenientes, tal como já discutimos aqui.

Ora, os serviços financeiros, incluindo a banca, são um dos sectores mais regulados da economia. Como se irá então processar a convivência entre a banca e a #DeFi? Tudo vai depender da lei, e da forma como são reconhecidos os direitos representados pelos criptoactivos, o que tem variado bastante de jurisdição para jurisdição.

Os criptoactivos têm demonstrado ser uma inquestionável reserva de valor a partir do momento em que as pessoas estão dispostas a transaccioná-los, e isto independentemente de pertencerem, ou não, à economia regulada. O mesmo acontece com, aliás, outro tipo de bens, como a arte, ou até com serviços que não careçam de factura.

Porém, os criptoactivos mais vulgares e mais bem-sucedidos vêm precisamente da #DeFi, e são muito parecidos com os produtos financeiros regulados, se bem que com factores de inovação só possíveis devido às propriedades únicas das DLT. É por isso que a relação entre a #DeFi e o sector financeiro estará sempre na ordem do dia, a começar pela banca.

Muitos anos se passaram até o sector financeiro começar a considerar os criptoactivos no seu portfólio, a diferentes velocidades, dependendo da geografia em causa. Ora, os activos financeiros tradicionais não têm vida própria por se constituírem como um acordo contratual representando vários tipos de direitos, sendo obrigatoriamente aplicados por uma ou mais entidades centralizadas (e.g., entidades bancárias).

Os criptoactivos também são direitos, os quais podem ser tratados de forma diferente por estarem representados em Smart Contracts, e que podem activar automaticamente a execução desses mesmos direitos subjacentes, desde que o código informático tenha valor legal.

Portanto, tudo vai depender da forma como os direitos são aceites pela lei em cada jurisdição, e há dois temas a considerar nesta altura: (i) os criptoactivos como simples reserva de valor, e (ii) os criptoactivos como detentores dos direitos propriamente ditos. Nesta reflexão, vamos discutir o que estes dois temas significam para a banca, e sempre com a criação de valor económico em mente.

Os criptoactivos como reservas de valor na banca

As reservas de valor tokenizadas podem ser (i) não-reguladas, tal como tudo o que hoje pertence à #DeFi, como também já podem (ii) estar ao alcance da regulação (e.g., activos financeiros ao abrigo do DLT Act na Suíça). Vamos discutir os dois.

As reservas de valor em criptoactivos, tal como as criptomoedas, são na sua grande maioria extremamente voláteis e têm dado imensas dores de cabeça aos reguladores. A memória do descalabro do binómio terra-luna revelou que nem as Stablecoin, supostas ter baixíssima volatilidade, resistiram incólumes ao mal-estar.

Mas se as reservas de valor na #DeFi estão circunscritas à economia não regulada, porquê tanto alvoroço? É que esse valor só se concretiza quando há transacções, e é aqui que se abre a caixa de pandora. O mais simples será transaccionar os criptoactivos não-regulados por quaisquer outros também não-regulados, como por exemplo, a troca de criptomoedas.

Enquanto os consumidores detiverem exclusivamente criptoactivos não-regulados, a relação com os bancos, a existir, vai passar apenas pelo reconhecimento dessas reservas de valor como parte da riqueza dos seus proprietários.

Para os bancos, o reconhecimento das reservas de valor oriundas da economia não-regulada passa sempre pela identificação jurídica dos detentores desses mesmos criptoactivos, o que varia de jurisdição para jurisdição. Na União Europeia (UE), as entidades financeiras, incluindo os bancos, têm de solicitar licenciamento para o tipo de serviços a prestar no contexto dos criptoactivos, o que se tem resumido essencialmente à custódia e aos Exchanges.

A lei na UE tem considerado os investimentos nas criptomoedas um tipo de crowdsourcing sem grande protecção legal, mas as licenças vão em breve ser alargadas com o regulamento MiCA, prestes a ser finalmente aprovado pelo Parlamento Europeu, permitindo assim algum controlo dos investimentos nas referidas criptomoedas.

O mais interessante é que o Comité para os Assuntos Monetários do Parlamento Europeu votou recentemente uma recomendação do BIS – Bank of International Settlement, sendo considerado por muitos o banco central dos bancos centrais, permitindo à banca na UE a detenção de capital na forma de criptoactivos da #DeFi no montante máximo de 2% do capital Tier 1. Não parece ser muito, mas a verdade é que isto abre o caminho ao investimento directo da banca na #DeFi, o que não deixa de ser surpreendente.

Os EUA têm estado na linha da frente quanto ao reconhecimento dos criptoactivos como reservas de valor. Por exemplo, em 2021, a Anchorage recebeu a primeira licença bancária de âmbito federal para fornecer os seus serviços com criptoactivos. Ora, uma licença bancária é muito diferente de simples custódia ou Exchange, tornando possível a inserção das reservas de valor oriundas da #DeFi na cadeia de valor bancária tradicional, sendo os empréstimos e a colateralização em criptoactivos exemplos particularmente significativos.

Interessante é também a transacção de activos não-regulados por outros da economia regulada, tal como um bem imobiliário ou mesmo o dinheiro. No limite, se as criptomoedas fossem consideradas meio de pagamento, seria fácil passar a adquirir tudo o que se quisesse. Mas não é assim tão simples, pois, até hoje, apenas dois países no mundo legalizaram a utilização da Bitcoin, e apenas essa, como meio de pagamento.

Aliás, sempre que hoje ouvimos falar de pagamentos em criptomoeda, há sempre um câmbio subjacente e imediato na moeda localmente aceite para a transacção (e.g., euro no espaço SEPA, ou USD nos EUA). Aliás, os comerciantes que não procedam a esse câmbio estarão em incumprimento legal, o que é particularmente grave quando estiverem envolvidos activos abrangidos pela regulação.

O segundo tipo cripto-reserva de valor a considerar para a banca é o que pode ser criado directamente na economia regulada, uma realidade em desenvolvimento acelerado na Europa e na China. São criptoactivos completamente desligados da #DeFi e começam por ser uma roupagem diferente para os activos tradicionais, isto por serem suportados por uma tecnologia diferente com as vantagens que já discutimos aqui.

Neste caso, o sector financeiro vai sofrer uma adaptação de toda a sua cadeia de valor para acomodar a auto-execução ecossistémica tornada possível pelas DLT (e.g., a blockchain), incluindo o espectacular florescimento de mercados secundários extremamente eficientes e com alta liquidez. Estes criptoactivos nada terão de especulativo por estarem sustentados em direitos e activos reais. Assim, a banca poderá deter os criptoactivos regulados que quiser desde que cumpra os rácios de estabilidade aplicáveis aos activos subjacentes, isto segundo a Comissão do Parlamento Europeu acima referida, bem como pelo comité de Supervisão Bancária do BIS, a aplicar a partir de 2025.

A tokenização certificada como veículo para aplicação dos direitos

Tudo o que se está a passar com as reservas de valor já é suficientemente intenso, mas empalidece ao lado da possibilidade de se poder aplicar a auto-execução ecossistémica à execução dos direitos reconhecidos nas economias incumbentes.

Na #DeFi, a possibilidade de anonimato das chaves criptográficas que manipulam os Token tornam impossível a sua aplicação directa aos direitos da economia regulada. Porém, a #DeFi tem sido um factor incrível de inovação. Será que a economia regulada pode beneficiar de toda essa inovação?

O bom exemplo para se compreender o que está em causa é o do prospecto dos títulos financeiros, cujos requisitos são particulares a cada país. No caso português, o valor mínimo para que um produto financeiro careça de um prospecto para ser admitido à negociação é de cinco milhões de euros. Actualmente, as entidades responsáveis pela verificação da execução dos detalhes destes produtos financeiros são todas as reguladas, e a banca faz parte do lote. Cada uma delas é livre de utilizar a tecnologia que quiser desde que cumpra as regras, e é a isto que se chama centralização.

Ora, o interesse da blockchain está precisamente na auto-execução não-centralizada, permitindo que os direitos dos prospectos assim tokenizados ganhem vida própria no estrito cumprimento da lei. Sabendo que a identificação jurídica é um requisito legal, como é que se garante o cumprimento da lei se os token são identificados com chaves criptográficas pseudoanónimas?

Na verdade, não é tão difícil como parece, bastando simplesmente não desvirtuar a filosofia subjacente à tecnologia blockchain. Em primeiro lugar, a identificação jurídica dos detentores dos criptoactivos terá inquestionavelmente de fazer parte integrante da execução dos Smart Contracts, através da tokenização da identificação digital devidamente certificada de todos os intervenientes na transacção, tal como já discutimos aqui.

No entanto, a identificação digital na banca é muito mais do que a simples utilização de um nome de utilizador com palavra de passe e meios de autenticação complementares como os cartões-matriz, pois a lei obriga à verificação de todo um conjunto de informações sobre os consumidores dos serviços financeiros, o que, para pessoas politicamente expostas, se tem revelado particularmente trabalhoso.

A banca está, portanto, particularmente bem posicionada para fornecer os serviços de certificação de identidades digitais capazes de participar nas transacções auto-executáveis dos produtos financeiros.

Mas o mais interessante é a garantia do cumprimento da lei, algo que vai deixar os reguladores verdadeiramente extasiados assim que compreenderem o verdadeiro poder da tokenização certificada. A ideia é aplicar a lei automaticamente na arquitectura de Smart Contracts, assegurando assim a priori o cumprimento da regulação por todos os participantes do ecossistema. E tudo isto sem mais esforço do que aprovar as regras no mesmo momento em que o próprio produto é aceite pelo regulador, sendo apenas outra vez uma questão de tokenizar essa certificação.

Como, neste mundo das plataformas, ganha quem tiver sucesso e crescimento antes de todos os outros, resta perguntar de que estamos à espera.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.