(Faço o meu habitual “disclaimer”: reconheço a Otelo o seu papel no 25 de Abril, pelo qual muitos membros da minha família muito lutaram, e reconheço idêntico relevo, embora não positivo, no que decidiu fazer a seguir, enquanto Comandante do Copcon. De acordo com o que me contam, foi sob a sua égide que a minha mãe, entre centenas de outras pessoas, foi por duas vezes presa, da última vez nada tendo feito para além de estar a atravessar o átrio da Faculdade de Direito. Essas semanas em que a minha mãe esteve presa em Caxias, sem acusação ou culpa formada e de cujos relatos o mais impressivo para mim foi o de Margarida Sousa Uva, entretanto também falecida, não constam que lhe tenham dado grande saúde e não demorou muito tempo a morrer. Penso que, compreensivelmente, pesa-me mais a morte dela do que o peso que lhe atribuem no primeiro dos eventos. Se Otelo não fez o 25 de Abril sozinho, parece-me que, por força das funções que então assumia, é o principal responsável por essas outras prisões no designado Verão Quente de 75. E, por isso, se lhe posso agradecer pela liberdade, não me consigo curvar perante a sua memória).

Quase a ir de férias, deparo-me, seguramente que por via do advento da silly season, com um texto em que Fernanda Câncio decide zurzir em Pacheco Pereira por ter, alegadamente, mudado de opinião quanto a Otelo.

Pelo que referi antes, tenho uma posição de grande distanciamento perante a figura do Comandante da Copcon, à qual não reconheço a craveira intelectual que teimam em colar-lhe, da mesma forma que não me parece que, num qualquer regime que se diga democrático, devam ocorrer prisões sem culpa formada e sem a intervenção de qualquer órgão jurisdicional. Isso sucedeu em Portugal, através da designada “Operação Turbilhão”, episódio quase nunca referido na nossa História e que fez várias vítimas.

Dito isto, não foi sem espanto que li umas linhas da jornalista que dá azo ao título e que se permite um ataque descabelado a Pacheco Pereira por, alegadamente, ter mudado de opinião quanto a Otelo, perante um elogio fúnebre que aquele entendeu fazer-lhe.

Se há coisas na vida que me parecem estranhas é, ao mesmo tempo que se despediram imensos jornalistas naquele grupo, Câncio continuar a usar o espaço que, por motivos que me escapam, detém para os seus ajustes de contas pessoais. Contudo, tem sido voz corrente e aqueles que dela discordam demasiadas vezes, como é o meu caso, têm como caminho certo e mais higiénico pura e simplesmente não lerem.

O que me parece completamente surreal neste artigo é que a sua autora se permite criticar asperamente um outro pelo que afirma ser falta de memória e pela invocada desonestidade intelectual.

A sério, Câncio? A sério que alguém acredita que já não há quem se lembre de umas certas piruetas dadas a propósito de um namorado de quem se esperava que comprasse uma casa de milhões?

Se viver neste país já é um exercício de resistência, ter memória é, muitas vezes, desesperante.

Sou, como tal, das que prefere quem muda de opinião a quem finja que o faz, apenas para manter a imagem que julga deter.

E esta é uma linha que procurarei nunca ultrapassar, mesmo quando o cansaço nos parece toldar o raciocínio.

Facto é que a Câncio (também) me cansa, embora saiba que o mar de Porto Santo está próximo e tratará de renovar as energias, enquanto a memória evitará que volte a cair no mesmo erro de ler o que devia permanecer num esconso qualquer.

Boas férias a todos e bom (des) Câncio.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.