A época da rarefacção dos lugares

Por princípio, lugares são espaços visitados pelo tempo. Um lugar é um espaço que se tornou um hábito, que fez memória e a que se regressa. Essa é a diferença entre um lugar e um local. Um lugar é mais do que uma localização, do que a intersecção de coordenadas, latitude e longitude, na superfície curva do planeta. Lugar é a camada de significação que se radica, cultiva e floresce – por exemplo nesse ponto de coordenadas – através de um hábito, uma repetição, que se faz forçosamente no tempo, no seu curso, e que se faz como apelo da própria repetição, que é como uma inércia confortável, uma âncora de segurança, um lastro de sentido. Os hábitos são habitados como lugares e os lugares são habitados por hábitos.

Há também lugares inabitados, que são mais memória de terem sido lugares e, assim, ainda que apenas dessa maneira, continuam a ser lugares. E também há lugares que são imaginação de serem lugares, por exemplo utopias, e que dessa maneira também continuam o hábito que faz lugar. E há ainda lugares que não são espaços físicos, ou virtuais, mas os nossos corpos vivos, com a sua extensão e a sua unidade. Ocorre o verso do poeta Daniel Faria – homens que são como lugares mal situados – que compara, mas não precisava. As pessoas são lugares genuínos para as outras pessoas, nelas reencontrando o hábito, a memória e a vontade de encontro.

Uma reflexão semelhante pode fazer-se acerca do tempo. O que são as temporalidades se não hábitos de uso do tempo que se diferenciam entre aqueles que os partilham e que, dessa maneira, os habitam? E se são isto, então temporalidades são tempo tornado lugares habitados por aqueles que as vivem.

Mas sendo todos os lugares espaço que o tempo trabalhou e todas as temporalidades tempo que se tornou lugares, este ligamento entre espaço e tempo fazedor de lugares não é, contudo, uma necessidade. Pode acontecer e será um trabalho de sentido, prática de cultivo e cultura, que se faz com a atenção do cuidado. O que é bom. Mas também pode não acontecer, que é precisamente a contingência histórica da nossa época:  estas práticas de fazer e habitar lugares estão a perder-se.

Os espaços perdem a sua relação com o tempo tornando-se um espaço único, sem camada de significado, tão literalmente geométrico, que nem com o espaço físico coincide, apenas uma abstracção, um espaço de passagem, de pessoas, informação e capitais. E, do mesmo modo, as temporalidades deixam de ser lugares, tornando-se apenas tempo, um só, contável, sem camada de significado, de novo tão literalmente abstracto e unidimensional, que nem com o tempo físico coincide, faltando-lhe, por exemplo, a direcção que a entropia lhe proporcionaria.

O resultado deste desligamento é um espaço e um tempo entre si divorciados, transformados em imperturbáveis eixos abstractos de referenciação e medida. Na realidade, essa imperturbabilidade, sendo ainda sentido, que repercute na organização das sociedades, dos seus ritmos, e das vidas nelas, demonstra que do aniquilamento das temporalidades sobrevive uma, hegemónica, cultura que se globaliza, de fluxos em passagem, desejavelmente acelerados, sem barreiras geográficas ou cronológicas.

A resposta à pandemia

Mais do que a pandemia, a maneira como lhe respondemos reiterou esta rarefacção de lugares, ao concentrar tempos e espaços. Por exemplo, o teletrabalho reduziu a diferença entre tempos, de trabalho, de lazer e de vida doméstica a convenções que cabe a cada um saber gerir, como um exercício da vontade kafkiano que tenta conciliar tempos e espaços para na mesma casa se conseguir cumprir as necessidades dos filhos em telescola e dos pais em teletrabalho. As plataformas de encontro e reunião remota foram substituindo, com pequenas adaptações, todos os espaços físicos por um, o do escritório, ou o da mesa da sala de jantar, ou da cozinha, consoante as possibilidades habitacionais de cada agregado familiar.

Se o confinamento, com o que trouxe de crise, poderia ter sido oportunidade de questionamento da normalidade, pelo contrário foi um esforço de adaptação no sentido de reforçar os aspectos mais básicos da normalidade.  Por isso, ‘novo normal’ acabou por ser uma expressão feliz, que, de forma ambivalente, também exprime a ideia de que é o mesmo normal, apresentado de forma nova.

Este carácter reiterativo está, aliás, em linha com designações como hipermodernidade ou sobremodernidade, propostas pelo filósofo Gilles Lipovetsky e pelo antropólogo Marc Augé respectivamente, e que evidenciam como a resposta à pandemia é expressão de um padrão epocal, que precede em muito a situação que hoje enfrentamos.

Justifica-se revisitar a reflexão importante que há já um quarto de século Marc Augé propôs em “Non-Lieux, introduction à une anthropologie de la surmodernité”. Aí, Augé faz uma distinção à partida muito clara entre lugares e não-lugares. Definem-se lugares como espaços identitários, relacionais, históricos e não-lugares como aqueles espaços que não podem ser definidos como relacionais, históricos e relativos a uma identidade. Com base nesta distinção, Augé sustenta, como hipótese, que “a sobremodernidade é produtora de não-lugares”.

Os não-lugares de Augé são sítios aonde se vai mas não além de uma condição anónima e que assim permanece, por efémera ou demorada que seja a passagem por eles. São os centros comerciais, os terminais dos aeroportos e das estações de comboios, os cafés das estações de serviço das auto-estradas, os hall dos hotéis, os próprios meios de transporte, autocarros, comboios, aviões, espaços de passagem, mas também de consumo, ou simplesmente de espera por um direito de passagem, como os campos de refugiados. Para o antropólogo estes não-lugares são cada vez mais comuns e vão ocupando as nossas cidades.

Mas pode conceber-se também um não-lugar inverso, um “não-não lugar”, onde nada do espaço abstracto das relações funcionalizadas esteja presente, mas subsista um espaço concreto. Por exemplo, os arrabaldes das cidades, que na transição para o campo guarda, entre vias de comunicação, como perdidos ou esquecidos, espaços indeterminados, onde gente esquecida ou que faz por estar esquecida reassume o espaço e o tempo, não como abstracções, mas como experiência concreta.

Sem romantizar estilos de vida alternativos, nas margens da sociedade, estes sítios podem ser pensados como os mais claros opostos dos não-lugares de que fala Augé. E há neles qualquer coisa de emancipador. Espaços habitados apesar de inteiramente à margem da funcionalização e do design do espaço e do tempo libertam a possibilidade do lugar e da temporalidade. Tornam-se aliás atractores de pessoas e comunidades que anseiam por viverem soberanamente o tempo e o espaço.

Nas vésperas do confinamento, uma exposição pública da fotógrafa Catarina Botelho, com o título Qualquer Coisa de Intermédio, que pôde ser visitada no Pavilhão Branco junto ao Museu da Cidade, em Lisboa, chamava a atenção para esses lugares. Trata-se de uma série fotográfica que vai ao encontro de espaços periféricos, de orla, nas fronteiras do território urbanizado, que parece invadido por desordem e regra, quando na verdade é a ordem e o completo regramento que invadem espaço e o funcionalizam.

Por outro lado, há uma possibilidade de lugar no não-lugar. Não no sentido apenas de que seja lugar para uns o que é não-lugar para outros, mas no de essa condição de não-lugar poder ser lugar. É nessa frincha, por exemplo, que os skaters fazem lugar, ocupando o espaço público, que usam além e apesar da sua funcionalização. Um lugar pode ser sempre também outro lugar: as escadarias de acesso a uma estação de comboios ou a um grande banco podem ser também o lugar onde permanecem convivialmente outros, com o seu tempo e espaço. A sistematicidade como os skaters o fazem não pode ser interpretada inexpressivamente, como se não transportasse significado nenhum. É fazer heterotopias, como dizia Foucault.

A cidade: ameaças e oportunidade de sentido

A geometrização do espaço e a metrificação do tempo são aspectos notórios do modo de organização da cidade moderna, com a sua racionalidade urbanística, racionalizando espaços, movimentos, serviços. Nesse sentido, pareceria que a cidade não estranharia as transformações do quotidiano que o confinamento trouxe. Mas é bem o contrário. E de três maneiras pelo menos a cidade foi vítima da resposta à pandemia.

1. A cidade confinada tende ao estado de dormitório. E se as pessoas trabalharem na cidade mas tiverem as suas casas e apartamentos em subúrbios dormitórios, então nem isso, a cidade confinada torna-se deserto. No início da pandemia mostravam-se cidades invadidas por animais selvagens, talvez não sem algum excesso de interpretação, mas que expressaria, com uma certa ambivalência, a angústia da cidade vazia, mas também da sua regeneração como um lugar vivo, ainda que diferente. E que teria na cidade de Chernobyl, por outras causas que não a pandemia, um caso exemplar, como David Attenborough notou num documentário recente e imperdível, A Life on Our Planet (2020).

2. Por outro lado, o “back to basics” que o novo normal imprime aos quotidianos significa sacrificar o que a cidade proporciona além do trabalho e do descanso: os cafés e os cinemas, as livrarias e os teatros, os concertos, as sessões de leitura, os espectáculos, de artes, mas também desportivos, acontecimentos culturais em geral, todos postos no cesto das distracções, mais ou menos importantes, mas não vitais para sobreviver.

Pela sua escala, mais populosa do que os meios rurais, a cidade, quanto maior é, mais proporciona à sua população a diversidade de percursos, de modos de vida, singularizações que se tornando possíveis dão testemunho do modo bem-sucedido de uma cidade ser cidade, um lugar que inventa e mantém lugares muito diversos. A pandemia, pelo contrário, pede, quando não impõe mesmo, que a cidade deixe de ser cidade neste sentido. E exprime a tendência de normalidade que a precedia, mas de forma mais desossada. Como o desafio planetário, de que nos fala Attenborough, é o de inverter a aniquilação da biodiversidade, o desafio das cidades é inverter a rarefacção de lugares, de que ela mesma é vítima.

3. Por fim, o movimento concentracionário do confinamento tem demovido a comparência no espaço público. Nas cidades, o encontro público e a manifestação pública, envolvendo muitos participantes, são pressionados à não realização e, caso insistam no contrário, tendem a tornar-se alvos de crítica aberta. Mas dessa maneira é a possibilidade de formação e expressão de consciências civis que se vê ameaçada.

O cuidado das cidades em tempos de pandemia deve ser pelo que as próprias cidades, mais do que qualquer outro lugar, podem proporcionar à humanidade, à continuação da sua história.

Mas, para não terminar sem uma palavra de optimismo, o modo de vida do confinamento também põe em evidência como o lugar cidade pode ganhar novas configurações, sobretudo nos tempos que se seguirem à pandemia. Nada está determinado à partida, apenas condicionado, o que é bem diferente. Se o teletrabalho, por exemplo, se tornar uma opção cada vez mais válida nas relações laborais, as cidades libertam-se de um constrangimento à sua distensão.

Se a cidade puder exprimir a sua vocação de fazer lugares, conviverá melhor com lugares de transição, também com a diversidade de bairros, respeitando a sua personalidade, evitando, sobretudo, a lógica concentracionária do movimento pendular entre centro e periferia, particularmente presente nas cidades mais desiguais, que confina grande parte da população activa (e não raros os seus filhos em idade escolar) também, às horas de trânsito, ao cansaço imposto extra-laboralmente.

Um desconfinamento pós-pandémico que fomentasse um entendimento da cidade como um meta-lugar de diversidade de lugares e fazedor de lugares, a cidades e os seus bairros, as suas fronteiras, mas também esses outros lugares que são os seus movimentos, contestações, criações, estilos de vida, marginalidades, heterotopias. As cidades são lugares privilegiados porque privilegiadamente podem ser começo de alguma coisa e sem isso dificilmente nos escapamos à ameaça sobre um modo humano de existir.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.