Querer auditar uma inteligência artificial é como tentar medir a sombra do vento. Mas, no vácuo regulatório, até esse impossível virou negócio e grandes firmas de auditoria do mundo – as Big Four – começam para vender aquilo que ninguém ainda sabe exatamente o que é: a confiança na IA.
Escreveu na passada semana o “Financial Times” que, de repente, a Deloitte, a PwC e a EY descobriram que seus selos, até ontem aplicados a balanços financeiros, podem também valer como garantias éticas sobre códigos de máquina. Alegam que querem proteger a sociedade de riscos “críticos” dos sistemas de IA, mas, ainda citando o reputado jornal inglês, o que realmente oferecem é um serviço de branding técnico: a ideia de que a inteligência artificial pode ser “confiável”, desde que auditada por eles.
A corrida por esse novo mercado revela muito mais do que interesse comercial. Ela demonstra uma tentativa clássica de captura regulatória. Diante da ausência de normas públicas, os auditores, naturalmente, podem escrever as regras e, com isso, definir também os critérios do que é ou não seguro.
A imprensa reproduz as promessas: os modelos serão verificados quanto a preconceito, risco de alucinação, robustez dos dados. Mas evita, também naturalmente, perguntar o essencial: quem audita os auditores? Provavelmente essas empresas não terão a competência técnica ou epistemológica para julgar a equidade de algoritmos generativos — porque ninguém ainda a tem.
Hoje, para as empresas, o risco não está apenas no que a IA pode saber ou fazer, mas em quem detém o monopólio de dizer o que ela deveria ser; e uma certificação ética vendida como um serviço premium não valida apenas o algoritmo, mas sim o interesse. Assim corremos o risco que a linha entre supervisão e propaganda desapareça, e isso não é bom para ninguém; e a longo prazo nem para as consultoras.
A ausência de regulação pública robusta é um perigo. Esse vazio pode permitir que surjam selos invisíveis, se celebrem contratos ambíguos e sejam elaborados pareceres técnicos que escondam conflitos comerciais. E que empresas privadas se apresentem como garantidoras da estabilidade de um futuro que elas mesmas ainda não compreendem.
Mais uma vez, a história se repete: o poder não espera ser regulado, ele antecipa sempre o regulador. E quando o medo social encontra o marketing corporativo, de imediato nasce um novo mercado – onde a confiança tem um preço.