E de novo aconteceu o impensável. Há um ano em Portugal, agora na Grécia. É preciso digeri-lo, torná-lo pensável. Algo mudou e é preciso, por isso, mudar os quadros com que as consciências cidadãs e políticas opinam ou decidem. Já sabemos que as alterações climáticas estão a derreter os pólos e que isso  pode fazer submergir países inteiros. É preciso reconhecer também que essas alterações climáticas estão a transformar incêndios florestais em bombas atómicas.

A comparação é de um artigo saído no El País, com dados esmagadores sobre a escala do incêndio de Pedrógão Grande, e que devia ser traduzido para a imprensa nacional. Por exemplo, nele lê-se que no fatídico 17 de junho do ano passado arderam 4800 hectares em 21 minutos e que semelhante velocidade de propagação nunca havia sido registada. Em Portugal ou onde quer que seja. Na Grécia, agora, muitas dezenas de pessoas morreram com a praia à vista. A um grupo de 26 só sobrou a humanidade de se abraçarem uns aos outros. Não houve tempo para mais.

Esta é uma nova realidade que irrompe de forma inesperada e brutal no contexto da realidade já conhecida das épocas de incêndios, que são, na sua grande maioria, controlados pelos meios de combate ao fogo existentes e pelas práticas de prevenção já conhecidas. Limpeza de terrenos, bombeiros devidamente equipados, o respeito por disposições legais sobre distância de árvores das vias e das habitações. Mas, dito isto, o grande novo problema é uma pequena minoria de incêndios que está para lá de todas as capacidades de combate e cuidados de prevenção convencionais. São esses que devastam áreas imensas em minutos, que não chegam para pessoas se porem ou serem postas a salvo, mesmo se a uma ou duas centenas de metros da praia.

Justifica-se uma comparação com a guerra do ponto de vista das vítimas, dizimadas como num bombardeio sobre civis. Mas faz sentido ir mais longe na comparação e dizer que assim como há uma guerra convencional e uma guerra com emprego de armas de destruição maciça, também com os incêndios é preciso não só melhorar meios de combate e de prevenção convencionais, mas pensar ainda outros que façam frente a estes novos incêndios violentíssimos, anormalmente intensos e propagadores. Se necessário for, para garantir a proteção das vidas das pessoas, declare-se a inabitabilidade do território florestado e a interdição de floresta em território povoado. Essa linha vermelha deve guiar toda a prevenção.

Com seriedade ou com demagogia, a politização das análises é inevitável, mas algumas, obscenas, devem ser expostas na sua obscenidade. A liberdade de expressão, para ser consequente, paga um preço: aceitar também toda a liberdade de crítica.

Dois apontamentos ilustrativos raiam a indignidade no espaço público português nestes dias em que assistimos à tragédia de Mati e nos regressa a memória horrorosa da tragédia de Pedrógão. Um deputado à Assembleia da República (Carlos Abreu Amorim) que, nas redes sociais, compara Portugal e Grécia, fazendo notar os paralelismos de ambos os países terem sido sujeitos a resgates financeiros e de ambos terem sido martirizados por incêndios extremamente letais.

Os paralelismos entre Portugal e Grécia não têm nada de obsceno. O que é obsceno é associar resgates a incêndios para, sobre uma coincidência, montar um juízo de culpa que atinge portugueses e gregos. Uma leviandade chocante, num momento de dor e urgência de solidariedade. Lá no fundo, tácita e larvarmente, uma desqualificação que não olha a meios, a lembrar aquela presunção quase racista de que a civilidade e a capacidade de enfrentar problemas é uma questão de latitude. Acabando por ceder às críticas, o representante remata a polémica com o queixume, que se vai tornando habitual, mas intelectualmente desonesto, de que está a ser vítima do politicamente correto. Por ser criticado?

Depois temos um jornalista sénior de um canal noticioso nacional que inquire, com curiosidade mórbida, sem qualquer inibição de circunstância, perto do odioso, o secretário de Estado da Proteção Civil (José Artur Neves) sobre quanto custa e sobre quem vai pagar a assistência de Portugal à Grécia e à Suécia. O governante respondeu bem em não responder.

Portugal e Grécia têm muitas razões para se solidarizarem, ou Portugal e a Suécia. Ou todos os concidadãos e governos europeus diante das dificuldades de uns e de outros. Mas nada disto será possível se não se recusar, com escândalo e crítica, tamanha inconsciência do que significa acontecer uma desgraça.