Devem medir-se com muito cuidado os eventos das últimas semanas.
Em Portugal foi desmantelada uma milícia armada, parte de movimento neonazi cujas intenções aparentemente passariam, entre outras, por invadir o Palácio de Belém e o Parlamento. No Médio Oriente, Trump mandou bombardear instalações nucleares no Irão e fez alusões à possibilidade de uma ‘mudança de regime’. Entretanto, a cimeira da NATO define a meta de 5% do PIB dedicado a despesa em defesa até 2035 – e Trump divulga uma mensagem pessoal de Mark Rutte onde o secretário-geral da NATO lhe tece loas e rejubila por se fazer a Europa “pagar em GRANDE”. Em Gaza, a ONU assegura que Israel continua a alvejar e matar pessoas durante a distribuição de comida.
Daria vontade de parafrasear a muito citada passagem sobre a história que se repete como farsa (sobretudo tendo em conta os aspetos tragicómicos da liderança americana), não fosse tanto horror impor-nos uma condenação mais veemente.
Combater o fogo pelo fogo (junto a um barril de pólvora)
O envolvimento direto dos EUA nos bombardeamentos ao Irão, na sequência do relatório de 12 de junho em que a Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) acusava o Irão de desrespeitar os deveres de não proliferação nuclear, é uma aposta altamente arriscada e levanta questões a muitos níveis.
Nem vale a pena apontar a incongruência a um Trump que sempre se definiu muito mais como isolacionista do que como intervencionista – como a característica geral é a imprevisibilidade, e fidelidade à palavra dada é valor que por ali não se respeita, o que aliados e inimigos podem fazer é calcular cenários, porque tudo pode sempre acontecer. Mas pode-se questionar a inteligência de um ataque direto a um aliado próximo da China e da Rússia precisamente quando se encetavam negociações.
Vale a pena repetir aqui um argumento que tem sido frequentemente invocado nas discussões sobre este tema: se o racional de possuir armamento nuclear é a dissuasão, face a uma agressão deste género o que impede o Irão de raciocinar no sentido de uma aceleração muito maior do seu programa, chegando precisamente à conclusão de que no dia em que de facto tiver uma bomba nuclear muito mais dificilmente será atacado? Aliás, as mais recentes avaliações ao dano provocado pelos ataques dos EUA estimam ser provável que apenas tenham causado um atraso de meses no desenvolvimento do programa nuclear (e não uma destruição total).
Perante isto, e face ao quebrar do cessar-fogo entre o Irão e Israel e à volatilidade da região, o que fazer? No extremo oposto ao do apaziguamento temos a hipótese, aventada de novo por John Bolton, de uma mudança de regime. Nada se pode dizer a favor de um regime tão brutal. Mas não precisamos de ir muito longe para nos recordarmos dos resultados das intervenções dos EUA no Médio Oriente nas últimas décadas: à queda de Saddam seguiu-se a ascensão do autoproclamado Estado Islâmico, à presença de quase duas décadas no Afeganistão seguiu-se o retorno imediato do regime Talibã.
Digamos que a experiência desaconselha fortemente o aventureirismo neste domínio – toda e qualquer mudança a este nível tem de ser endógena, pretendida pelo próprio povo.
De volta à lei da bala?
A discussão sobre o aumento da despesa em defesa no âmbito da NATO surge neste contexto. E aqui, é preciso verdadeiramente perguntarmo-nos em que tipo de mundo queremos viver. Já teremos parado para pensar o que significaria, para um país como Portugal, com o seu estado social precário, os seus crónicos problemas no SNS, o seu inexpressivo investimento na ciência e na cultura, dedicar 5% do PIB à defesa?
Não se trata de ingenuidade nem, no caso europeu, de ignorar a potencial ameaça a Leste. Mas acreditar que teremos necessariamente paz aumentando exponencialmente o investimento bélico faz tanto sentido quanto propor, como por vezes ouvimos a Republicanos nos EUA, que se armem professores e funcionários para se evitar massacres com tiroteios em escolas, em vez de proibir o uso de armas. Se a solução for essa então não nos surpreendamos se, de facto, a lógica de conseguir a bomba nuclear for a seguida pelo Irão.
A crise que vivemos é complexa. Faz-se neste momento sentir enquanto crise do direito internacional e retorno puro e duro à lei do mais forte, mas a essa crise subjaz uma forte tendência para o desrespeito pelas normas em geral (incluindo as que devem reger o discurso público), pela verdade ou pelo respeito pelos outros. As suas causas são profundas e não é este o local para tentar elucidá-las. Mas, no caso trazido aqui à colação, a opção é entre o belicismo alegadamente preventivo ou o respeito por uma ideia de ‘civilização’ baseada em normas, respeito e direitos humanos. E a nós, enquanto europeus, nada mais há a fazer do que pugnar por aquilo que achamos que os nossos governos devem defender.
O corajoso exemplo de Espanha
A este respeito, penso que o exemplo de Espanha neste caso tem sido corajoso e instrutivo. A propósito do compromisso com uma despesa de 5% do PIB em defesa, Pedro Sánchez afirmou taxativamente que ela “seria incompatível com o nosso Estado social e a nossa visão do mundo” o que é, no fundo, uma declaração não só pragmática como de princípio. E que é legítima uma vez que, recorde-se, não há mecanismo legalmente vinculativo que obrigue os estados da NATO a uma determinada despesa em defesa (mesmo os 2% eram um compromisso político).
Já sobre como lidar com o que se passa em Gaza, José Manuel Albares, ministro dos Negócios Estrangeiros do governo espanhol, apelou à suspensão do acordo de associação entre a União Europeia e Israel, ao embargo à venda de armas a Israel e sanções a quem se oponha à solução de dois Estados. As propostas são absolutamente claras e, acrescente-se, absolutamente justas perante a desumanidade a que se assiste em Gaza e perante o direito de existência de um Estado palestiniano – apesar de serem obviamente minoritárias perante a tibieza da União Europeia a este respeito.
Longe vão os tempos em que se poderia pensar num possível alinhamento ibérico em assuntos contenciosos em que, apesar de se argumentar a partir de posições minoritárias, se podia ter um módico de esperança de que outra Europa seria possível: menos concentrada na austeridade no rescaldo da crise das dívidas soberanas, ou menos securitária e mais humanitária na crise dos refugiados. O espírito do tempo aqui do nosso lado é outro. Mas não devia ser assim.
É difícil ler a mensagem de Rutte, com toda a dureza perante os europeus, e não nos lembrarmos da acusação de Djisselbloem em 2017 de que os europeus do sul gastariam o dinheiro em “mulheres e álcool” para depois “pedir ajuda”. Em ambas se nota um certo comprazimento na punição perante o alegado desvio; se o mantra anterior era o do ‘ajustamento financeiro’ o atual é o da segurança pela força.
Mas e se – ó, heresia! – os valores mais importantes fossem os da paz e do respeito pelas vidas humanas, não se imporia a coragem de ir contra este ar do tempo?