Estes últimos tempos têm sido pródigos no surgimento em catadupa de operações judiciais que envolvem personagens públicas relevantes nos mais variados setores e poderes institucionais da sociedade.

Na semana passada, tomámos conhecimento de mais um caso, envolvendo agora um juiz desembargador que supostamente terá movido influências ao longo de anos e cometido uma série de atos de corrupção para proveito próprio. Obviamente que é importante respeitar a presunção de inocência até ao julgamento e ao resultado da sentença, contudo, este dado não nos deverá limitar a reflexão sobre as causas e as consequências associadas a estes megaprocessos jurídicos.

Neste texto irei debruçar-me sobre as múltiplas considerações que têm atafulhado o espaço público relativamente às causas da corrupção. Na verdade, trata-se de um conceito amplo e difícil de analisar em pouco parágrafos, por isso, deverá haver cautela em avançar com opiniões que, muitas vezes, assentam em meras notícias mais ou menos sensacionalistas.

Assim, de uma forma sintética e correndo algum risco de reducionismo, dos inúmeros artigos e comentários produzidos nestes dias, salientam-se dois posicionamentos principais que têm polarizado o debate e pouco contribuem para o esclarecimento da opinião pública.

De um lado, persistem os comentários que tendem a salientar a normalidade, referindo que a corrupção não é o problema crucial da nossa democracia e que neste âmbito as práticas e condutas das elites nacionais assemelham-se, grosso modo, às de qualquer outro país europeu. Do outro, surgem aqueles que frisam, por sua vez, a normalização da corrupção, vincando o facto de esta deter um caráter sistémico e generalizado em Portugal. Segundo estes, os casos conhecidos são reveladores da transversalidade da corrupção entre as diversas classes sociais, envolvendo todos os setores da sociedade e da economia.

Torna-se imperioso sair deste pingue-pongue que não leva a lado nenhum e só contribui para ocultar outras dimensões mais pertinentes e estruturais para a análise do fenómeno. Na verdade, o que está a acontecer não pode ser visto como mera normalidade: os arguidos envolvidos nos vários processos exerceram, num passado recente, funções políticas, administrativas, jurídicas ou económicas muito revelantes e com responsabilidades acrescidas.

Pode alegar-se que a justiça está a funcionar normalmente e a fazer o que tem de ser feito, o que é um dado positivo. No entanto, não se deve confundir a boa atuação da justiça com a ideia de que a proliferação de todos estes casos não causa um sentimento profundo de anomalia e de extrema preocupação, que aprofundam as perceções de desconfiança relativamente aos atores e instituições basilares dos sistemas político, económico e jurídico.

Contudo, isto não significa considerar, por seu turno, que a corrupção se foi normalizando, como se fosse algo endémico na nossa sociedade. Do meu ponto de vista, é um tremendo erro argumentar com critérios de índole culturalista que enfatizam a persistência da corrupção resultante de uma espécie de matriz cristalizada de valores e de práticas que permanecem ao longo de gerações.

Assim, para bem da sanidade do debate, é fundamental romper com estes maniqueísmos que só encobrem outros fatores raramente aludidos. Por exemplo, seria importante enquadrar na análise destes casos, e respetivas condutas lesivas, as crescentes e sofisticadas dinâmicas de financeirização que marcam o atual sistema capitalista. Isto é, em vez de alegar artificiais regularidades culturais, talvez seja mais pertinente perceber até que ponto a crescente influência e contaminação dos mercados financeiros nas esferas económicas (como a construção civil ou o futebol) e não económicas (como a política ou a justiça) está a contribuir para a constituição de zonas de penumbra, onde os diversos interesses se imbricam em relacionamentos promíscuos e ocultos, que são quase inatingíveis ao controlo pela maior parte dos cidadãos e das instituições democráticas.

Ou seja, torna-se necessário contextualizar e historicizar a complexidade dos atuais processos, de modo a perceber que estes acontecem e se desenvolvem no seio de uma economia globalizada marcada, nomeadamente, pela abolição do controlo de capitais e pela desregulamentação dos mercados financeiros.

As práticas ilícitas que derivam da financeirização não são transversais a toda a população, pelo contrário só uma pequeníssima parte muito privilegiada as consegue manipular e manobrar para proveito próprio (se for esse o seu intuito).  Na verdade, o nível de sofisticação atingido nestas zonas obscuras de ilegalidade, que se espelha em procedimentos e posicionamentos de impunidade, representa um sério risco que corrói a coesão das sociedades e o bom funcionamento das democracias.

Neste sentido, trata-se de um tipo de corrupção que não é normal, nem está normalizada nos diversos estratos sociais (tanto na base como no topo). Algo mais deverá ser equacionado para o debate público, de maneira a percebermos que não se trata da questão cultural, mas acima de tudo, da questão financeira e do modo como esta abre novas e infindáveis possibilidades para enriquecimentos ilícitos.

A este respeito, seria interessante que analistas, comentadores e, sobretudo, jornalistas de referência (designadamente o jornalismo económico) não embarcassem no sensacionalismo fácil, propagado pelos tablóides, e perspetivassem uma análise crítica e fundamentada sobre as consequências perversas da financeirização que, entre outras facetas, se expressa também na complexificação da opacidade dos processos e dos comportamentos de corrupção.