1. A discussão à volta da eutanásia – melhor dizendo: da despenalização da morte assistida em doentes terminais – volta a lembrar-nos como em Portugal se despreza a democracia direta em detrimento da chamada democracia representativa.

O tempo avança, mas parecemos continuar a viver em pleno século XVIII, quando apenas a chamada elite tinha capacidade para discernir sobre os assuntos verdadeiramente importantes, não estando estes ao alcance do cidadão comum, os simples.

Se numa matéria como esta, acerca da Vida e das suas condições limítrofes, não nos impomos uma reflexão e uma manifestação de vontade individual e coletiva, qualquer que ela seja, então o melhor é fechar as portas da cidadania e reconhecer que os donos disto tudo são mesmo os partidos e as instituições por eles controladas, com o governo e a Assembleia da República à cabeça, nas quais o pessoal político, auto-divinizado, realiza todas as suas vontades, às vezes em velocidade supersónica.

É o caso, e já há data marcada: dia 20, quando os projetos-lei do PS, BE, PAN e PEV sobre a eutanásia forem votados dando origem à futura despenalização da morte assistida – a qual o PR, depois, com mais ou menos verificação, acabará por ter de promulgar.

2. Em Portugal, realizaram-se até hoje três referendos nacionais, dois sobre Interrupção Voluntária da Gravidez, e um sobre a regionalização, mas nenhum deles teve a participação de mais de 50% dos eleitores, razão pela qual acabaram por não ser vinculativos. Mas nem isso pode ser desculpa para a falta de vontade política de ouvir as pessoas.

A democracia cultiva-se, como na Suíça, onde se realizaram, até 1993, metade dos cerca de 800 referendos realizados no mundo inteiro; ou como em quase todos os Estados que compõem a mais famosa união norte-americana. Aliás, em contraposição com Portugal, que apenas admite referendos sobre uma matéria (artigo 115 da Constituição), na Califórnia realizam-se consultas com várias páginas sobre os mais variados assuntos. Em 1990 houve uma com 221 páginas de perguntas!

Por muito que o referendo já tenha tido más utilizações no mundo (ver caso da ditadura de Pinochet, no Chile), a verdade é que a sua realização indicia as democracias evoluídas, sempre com Suíça e Reino Unido à cabeça, mas também com o bom exemplo do Uruguai, na América Latina.

Aliás, a instituição referendo tem muitas dimensões, até a local. São vários os países na Europa do Norte em que se ouvem as populações sobre a prioridade das obras a fazer com o dinheiro disponível. E não pode haver dúvida: as democracias mais consolidadas não têm medo da vontade dos seus cidadãos. Veja-se o Brexit.

3. No presente caso português, é lamentável mas também significativo que apenas o Chega tenha uma posição clara a favor deste referendo em concreto.

Dir-se-á, por contraposição às posições da esquerda (também o PCP, que continua a rejeitar a eutanásia, é contra o referendo), que são os partidos de direita os que mais gostariam de ver realizada a consulta. Em parte é verdade, mas esta é uma visão primária e redutora. O deputado Ascenso Simões, do PS, é contra a eutanásia. E Rui Rio, presidente do PSD, é a favor.

Estamos perante uma matéria com uma dimensão pessoal importante. Não deveria haver uma decisão em circuito fechado, mas a democracia portuguesa continua a ser coutada dos partidos. Recebem o voto e sentem-se legitimados para decidir sobre tudo, sobre todos.

Infelizmente, não vai haver também oportunidade para visitar, na grande discussão, um importante tema associado: o facto de os ricos terem a possibilidade de prolongar mais a vida por poderem ter acesso aos cuidados paliativos que o Estado não assegura aos pobres. Se calhar, não interessa.