Muita tinta fez correr a eleição de Joacine Katar Moreira para a Assembleia da República, na sequência das últimas eleições legislativas.

Cabeça de lista pelo círculo de Lisboa, Joacine foi a primeira mulher negra a encabeçar uma lista partidária a eleições legislativas em Portugal, acabando por ser eleita, por um partido – o Livre – que ainda não conseguira eleger nenhum dos seus candidatos, apesar de contar nas suas fileiras com alguns nomes sonantes da cultura e da política portuguesa, como Rui Tavares, Ana Drago, José Mattoso, Júlio Machado Vaz, Viriato Soromenho Marques, José Maria Castro Caldas, Ricardo Sá Fernandes ou São José Lapa.

Mais do que a cor da sua pele, o que mereceu mais destaque por parte dos media relativamente à primeira deputada eleita pelo Livre na história do partido foi a sua gaguez, que fez com que muitos considerassem que Joacine era, sobretudo, um produto de marketing, capaz de catapultar um partido de intelectuais de esquerda para o mainstream político.

Joacine captou, inquestionavelmente, a atenção do público, pela sua atipicidade, conseguindo disputar com André Ventura, o líder do Chega, o título de concorrente mais mediático às eleições legislativas de 2019, fazendo sucessivos apelos aos direitos das minorias étnicas e das mulheres.

Mas, poucos meses volvidos, a deputada já é mais conhecida pela sua arrogância e distanciamento em relação ao partido que a elegeu, ou pela indumentária do seu assessor, do que pelos seus dotes de parlamentar ou pela inteligência que muitos lhe reconhecem, capaz de a guindar a bandeira de uma esquerda elitista e portadora de causas e valores.

Tudo começou com a estranhíssima abstenção de Joacine em relação ao voto de condenação à agressão israelita a Gaza, com a deputada a afirmar que tentara, sem sucesso, por diversas vezes, saber a orientação do seu partido, e que, face ao silêncio do mesmo, optara pela abstenção, num tema em que até um marciano saberia qual a posição de princípio de um partido com a ideologia do Livre.

Depois, falhou o prazo para a entrega do projeto de lei sobre a nacionalidade (o prazo limite era 22 de novembro e o projeto só foi apresentado em 26 de novembro), o que causou um profundo mal-estar no interior de um partido que fazia deste tema um dos seus porta-estandartes.

Na sequência destes incidentes, Joacine apareceu a defender que a sua eleição se devia, em exclusivo, à sua atuação e à sua personalidade e que não aceitava que a direção do partido a viesse ensinar a ser política, envolvendo-se em discussões inenarráveis nas redes sociais contra aqueles que a criticaram.

Agendado para a semana passada, o IX Congresso do Livre foi dominado pela discussão da retirada de confiança política à deputada Joacine Katar Moreira. Apesar do adiamento da decisão, a deputada protagonizou o momento alto do congresso ao exaltar-se e dizer: “Isto é inadmissível, isto é mentira, tenham vergonha, mentira absoluta!”, batendo no púlpito para onde subira para reagir às considerações contidas na resolução da Assembleia do Livre.

Numa intervenção marcada pela irritação e gritaria, a deputada Joacine conseguiu não gaguejar e criou um momento claramente constrangedor para o partido, tendo Rui Tavares afirmado no final que tinha sentido “a vergonha alheia dos outros” durante o discurso de Joacine Katar Moreira, ao mesmo tempo que a responsabilizou “por ter cortado com processos internos”.

A criatura superou claramente o criador, devendo ser assacadas ao Livre as responsabilidades de ter avalizado a candidatura de Joacine como cabeça de lista por Lisboa, colocando em risco o futuro do partido. Agora, ao abrigo do princípio do exercício livre do mandato plasmado na nossa Constituição, Joacine continuará, com ou sem Livre, a ter assento parlamentar e atirará o partido pelo qual foi eleita para um purgatório político do qual dificilmente conseguirá sair.

Joacine, por mais que gesticule, que se irrite, que tenha tiques de autoritarismo, dificilmente será resgatada do lodo em que se deixou cair e a sua carreira política terminará certamente com a mesma rapidez com que se iniciou. Ficará para a história como mais uma lição de que, para um partido que sempre se afirmou anti populista, a escolha de uma candidata populista e mediática foi um tiro no pé que lhe retirou quaisquer hipóteses de se afirmar como uma alternativa credível na esquerda do nosso espectro político.