A realidade presente parece saída de uma obra esculpida por Albert Camus, porque, aparentemente, estamos inseridos numa realidade existencial fundada numa impossibilidade de prever um futuro quanto à saída da crise pandémica. Principalmente, numa altura em que os países europeus já se encontram numa segunda fase da crise pandémica que está a obrigar à adopção de medidas de carácter excepcional, que implicam normalmente a declaração de estados de emergência. Com isto, os cidadãos terão os seus direitos suspensos por um período de tempo.

Face à situação actual, muitas pessoas estabelecerem uma comparação com a obra “A Peste”, de Camus. No entanto, reconduzirmos a nossa condição actual a uma obra de Camus é um exercício redutor, visto que o autor procurou sempre construir personagens submetidas a uma realidade existencial superior à sua capacidade de se transformar pelo génio humano.

De facto, a situação pandémica actual encaixa-se perfeitamente numa estrutura narrativa de um existencialismo agnóstico e niilista de Albert Camus, porque os instrumentos de fé, bravura, coragem, desejo e vontade são todos em si insuficientes para proceder a uma alteração da nossa condição pandémica.

Estamos, assim, estacionados no tempo e paralisados no espaço, apesar de nascer sempre um novo dia. Com isto, a nossa capacidade imaginativa de projectar uma saída dessa crise é limitada. Dependemos quase exclusivamente da fé na ciência (Deus da modernidade) que está a tratar de encontrar uma cura, através de uma vacina quase milagrosa. Este processo está a ser conduzido pelos vários centros de investigação que controlam os procedimentos e são detentores exclusivos de toda a informação relevante.

Aos vários governos resta a imposição de regras de convivência para minimizar o contágio ou evitar a ruptura dos sistemas de saúde dos respectivos países. Isto sucede apenas nos países desenvolvidos, visto que nos países africanos, por exemplo, não existem sistemas públicos de saúde, mas, sim, um conjunto de hospitais que tentam dar resposta, praticamente sem meios, aos cidadãos.

É neste contexto, de uma prisão temporal e existencial camusiana, que o conhecimento sobre o passado poderá servir como um artifício de alento para projectar o futuro. A título de exemplo, parece que a cada dia que passa, procuramos aproximar-nos do exercício praticado por Luís de Sttau Monteiro na sua obra “Felizmente há Luar”, escrita durante o Estado Novo. Aí o autor realça que em tempos de aprisionamento mental é necessário encontrar uma saída imaginativa através do conhecimento da nossa experiência sobre o passado.

Cabe-nos, assim, pensar que o  homem faz parte do passado e não somente de um futuro. Pelo que a crise actual não representa em si a finitude do ser humano, mas, sim, um condicionamento que ocorre e ocorrerá em todas as fases da nossa experiência humana. Por isso, as crises cíclicas fazem parte da ordem das coisas e, como somos  parte de um meio ecológico, não estamos fora dessa cadeia ecológica de relações, apesar de termos construído um mundo de artificialidade por via da nossa acção humana. Importa, assim, reflectir sobre a extensão dos efeitos dessa crise pandémica como uma experiência existencial.

Esta crise pandémica obriga-nos a deixar de cultivar o espírito narcísico que comporta uma visão que o mundo depende da nossa vontade. Porque somos, sobretudo, parte de um meio ecológico superior à nossa dimensão existencial de vontades e de fés. É assim que Camus nos passa a noção que a experiência do homem é superior à existência.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.