A falência do histórico banco de investimento norte-americano Lehman Brothers em 15 de setembro de 2008 foi um dos catalisadores da Grande Recessão que moldou comportamentos sociais e influenciou de forma significativa as tradicionais regras do jogo, tanto no campo económico-financeiro, como no campo das relações internacionais – onde as suas repercussões se fazem sentir ainda nos dias de hoje, seja na intensificação das políticas comerciais protecionistas norte-americanas, seja ao nível dos receios relacionados com a desagregação do euro na União Europeia.

Olhando para trás, fica o facto de ter prevalecido sempre a força dos bancos centrais nos instantes decisivos, evitando um desastre com proporções verdadeiramente disruptivas na sociedade. Isto, contudo, não foi feito sem custos e não é líquido que a crise financeira esteja definitivamente ultrapassada. Uma década depois aliás, o enquadramento económico global aponta para um cenário misto, com muito trabalho pela frente – como é o caso europeu.

No final do dia, imperou a força dos bancos centrais…

A estabilização e normalização do sistema financeiro internacional terão sido a mais relevante conquista por parte das instituições e decisores internacionais, que assim evitaram uma nova depressão, ou até o colapso do sistema bancário mundial. Para a história fica o facto de, perante o maior desafio de sempre, ter prevalecido a força dos bancos centrais internacionais, que conseguiram estancar a espiral recessiva, restaurar a confiança nos mercados e estimular o regresso ao crescimento económico. Na maior parte dos países, a criação de riqueza real, medida pelo PIB per capita, é hoje mais elevada que no período anterior à crise, e a taxa de desemprego regressou a níveis próximos do fatídico ano de 2008.

Na zona euro, a ação do Banco Central Europeu (BCE) foi decisiva para evitar o desmembramento daquela, ao assumir um papel muito para além do mandato original da gestão da inflação, promovendo e gerindo programas de compra de ativos e funcionando como garante de última instância do sistema financeiro europeu e, sobretudo, da moeda única europeia, afastando o risco de redenominação de moeda mesmo perante desafios como o Brexit e o crescente fenómeno de revolta dos eleitores que têm vindo a alimentar um sentimento de euroceticismo nas mais importantes economias da União Europeia. O BCE conseguiu reconstruir uma espécie de “Europa fortaleza” que, apesar dos desafios geopolíticos, tem conseguido até ao momento manter a confiança em torno do sistema financeiro e de uma maior integração da zona euro.

…mas a margem de manobra da normalização monetária é ainda reduzida, sobretudo no euro

Contudo, a saída da crise não foi feita sem custos de monta, em particular no que respeita aos instrumentos de política monetária, uma vez que as economias desenvolvidas não têm sido capazes de gerar inflação compatível com o crescimento gerado. Nos Estados Unidos, o processo de normalização monetária ainda é insipiente, mas na zona euro o processo ainda nem sequer começou, e alguns fatores colocam algumas preocupações sobre o futuro, especialmente em países da periferia como Portugal.

Recorde-se que, durante o caminho para a crise financeira, o acesso fácil ao crédito em condições favoráveis estimulou o mercado imobiliário e, consequentemente, a atividade económica. O endividamento das famílias aumentou e os preços das casas também. A crise trouxe um fim abrupto do acesso ao financiamento interbancário e os bancos deixaram de emprestar dinheiro às famílias e empresas. Por outro lado, os países aumentaram o endividamento muito rapidamente para promover estímulos fiscais e conferir suporte ao sistema bancário.

Tudo isto deixou um enorme lastro de dívida soberana e corporativa, mas que tem uma mistura diferente dependendo dos países ou economias que estejamos a falar. Enquanto que em países como a Alemanha o ciclo de taxas de juro baixas atraiu maior endividamento de todos as classes de agentes económicos (Estado, famílias, empresas), nos países da periferia o aumento do endividamento fez-se essencialmente à custa da dívida soberana (Itália, Espanha, Grécia e Portugal), o que tem impactos sobre os prémios de risco e aumenta o enfoque sobre a gestão orçamental das contas públicas, assim como da capacidade de gerar crescimento económico sustentável que permita enfrentar um ciclo de subida de taxas.

Bottom’s up:  quando as taxas sobem, reduz-se o espaço de manobra

A economia global tem vindo a crescer, e isso continua sarar as feridas da grande recessão de 2008. Mas a normalização monetária está a caminho nos Estados Unidos, e isso terá efeitos sobre o resto do mundo desenvolvido que se encontra hoje mais interligado. E à medida que se regista menor espaço para continuar a crescer, ou seja, à medida que o ciclo vai chegando à sua maturidade, não é totalmente seguro dizer que a normalidade foi reposta ou que estaríamos mais preparados para enfrentar uma nova crise, como a que foi originada pelo colapso do Lehman Brothers.

O grande aumento do stock de dívida foi o legado que nos deixou a Grande Recessão, e representa a bomba-relógio que paira sobre as economias desenvolvidas, sobretudo as europeias, e sobretudo sobre as economias periféricas como Portugal. Apesar do clima favorável de crescimento em cenário de taxas de juro extremamente baixas, o endividamento público não tem vindo a cair. Acresce o facto de, na ânsia de diversificar a angariação de fundos, haver atualmente (sobretudo nas emissões de empresas) muito mais emissões de dívida cotada em dólares, o que aumenta a influência da política monetária norte-americana, ou até de uma apreciação do dólar na Europa, onde o ciclo de recuperação se encontra ainda bastante atrasado.

Ou seja, isto significa que apesar do controlo do défice das contas públicas que os países europeus, e Portugal em particular, têm vindo a levar a cabo com sucesso, tal possa não ser suficiente para criar resiliência para enfrentar uma nova recessão – e que pode surgir, no limite, de fatores geopolíticos como a escalada de uma guerra comercial, ou da tentação de novas desagregações na zona euro. Isto porque o excessivo endividamento dos Estados representa uma significativa restrição para que os Bancos Centrais sejam capazes de impor a sua lei com o mesmo sucesso.

A chave reside nos esforços das instituições europeias e dos seus executivos, no sentido de criar a resiliência económica necessária para superar os ciclos negativos, procedendo (no caso da Europa) a uma maior integração e, consequentemente, a reformas estruturais, ao mesmo tempo que implementa medidas que permitam corrigir os desequilíbrios entre países que existem atualmente. Para Portugal, país que apresenta muitas destas fragilidades estruturais, uma estratégia de competitividade e de correção dos desequilíbrios económicos para com os parceiros europeus deverá ter que estar no topo da agenda dos decisores políticos na próxima década.