À hora a que escrevo, desconheço ainda os resultados das “autárquicas” de ontem. Mas assisti à campanha, que mostrou pelo menos duas coisas: os jornalistas portugueses continuam a confundir uma entrevista simultânea a uma multidão de candidatos com um verdadeiro debate, e os vários partidos continuam a reproduzir as mesmas banalidades sobre as virtudes da “descentralização” que papagueiam há décadas.

Quase não há um político que não sinta a necessidade de explicar como a “proximidade” das autarquias aos cidadãos lhes permite “responder” às suas “reais necessidades”, e os praticantes do ofício que não reproduzem esta ladainha são apenas os que não deixaram para trás o relativo anonimato, e por isso não têm quem lhes ponha um microfone à frente ou lhes empreste umas linhas num jornal. Mas para desgraça de todos nós, a “descentralização” que se preza e se pede é invariavelmente a descentralização de poder, nunca a de responsabilidade.

O “poder local” sofre de um pecado original: o de ser em grande medida financiado pelo Orçamento Geral do Estado. O mecanismo é perverso, não apenas por, como se queixam os autarcas, fragilizar em tempos de vacas magras a capacidade das autarquias para desempenharem eficazmente as suas funções, mas acima de tudo por, em qualquer altura, criar um ambiente de desresponsabilização política dos autarcas que dá origem a uma série de fenómenos pouco saudáveis.

Sendo a política partidária o que é, qualquer aspirante a Presidente de uma Câmara tem, primeiro, de criar uma série de cumplicidades com uma mais ou menos vasta (mas nunca dispensável) rede de interesses clientelares, dentro das máquinas partidárias ou ao lado delas, sem as quais não pode sequer ser escolhido para candidato ao cargo. Depois, dependerá delas na campanha eleitoral, de cujas actividades elas próprias em grande medida dependem para obter os seus rendimentos. E se por acaso conseguir ganhar, terá depois de manter essas mesmas clientelas minimamente satisfeitas e seguras, para que elas não procurem uma alternativa melhor.

Claro que, se agradar suficientemente ao “povo”, o autarca poderá até dispensar o partido que lá o colocou. Mas para agradar suficientemente ao “povo”, o autarca terá forçosamente de “mostrar obra feita”. Seja através de obras públicas, seja através da realização de festas, seja pela distribuição de empregos nas empresas municipais, a “obra” traduz-se quase sempre na distribuição mais ou menos directa de recursos dos cofres da autarquia para os bolsos dos eleitores (ou parte deles), criando uma outra rede de cumplicidades e clientelismo (mais ou menos legal, conforme o caso) com o autarca no centro.

Como parte significativa do dinheiro que sai dos cofres autárquicos para o bolso dos munícipes saiu antes dos cofres do Terreiro do Paço, os custos dessas políticas, e consequentemente a responsabilidade por elas, são disseminados por todo o país: como as políticas dos autarcas são financiadas em grande medida pelo Orçamento de Estado (e em dívida acumulada a ser paga sabe-se lá por quem), o custo inerente a essas políticas é pago pelos contribuintes de todo o país, fazendo-se sentir em menor grau nos eleitores desse autarca. O eleitorado atribui ao autarca local as melhorias de condições de vida por eles conseguida, e ao governo central as culpas pelo mau estado de tudo o resto, e, acima de tudo, a raiva contra a elevada carga fiscal que, sem se aperceberem, é necessária para financiar a tal “obra feita” do herói local.

Assim, não é difícil perceber como a situação financeira do país chegou ao que chegou, e pior, que haja tão pouca confiança nos governantes em circunstâncias que, pela gravidade do momento, exigiriam que ela fosse bem maior para que fosse possível realizar as difíceis reformas de que o país necessita.

É verdade que muitas das transferências do Orçamento para as autarquias – especialmente as das zonas mais pobres do país – têm como propósito permitir que estas ofereçam aos seus munícipes serviços de que eles de outra forma não poderiam usufruir. Mas talvez fosse altura de perceber que dar dinheiro a redes de distribuição de benesses por clientelas talvez não seja a melhor forma de ajudar quem precisa, e que só obrigando os autarcas a responderem pelos custos das promessas e “obra” que fazem se poderá melhorar – por pouco que seja – a saúde do país.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.