É de certa forma desinquietante ver o mercado acionista a subir quase tão vorazmente como afundou durante o mês de março, a recuperar três quartos das perdas em cerca de três meses enquanto o mundo enfrenta uma crise pandémica, enquanto dezenas de milhões de trabalhadores se encontram desempregados ou em situação de lay-off

É desinquietante porque ilustra de forma incontornável um dos maiores desafios que a nossa geração tem pela frente, que corrói as nossas democracias por dentro, se o seu combate não for uma prioridade: o desafio da desigualdade económica.

É desinquietante também porque ainda que tenha sido uma recuperação algo surpreendente desde os mínimos de março até agora, é possível (e até provável) que o mercado acionista continue a valorizar nos próximos meses, lançando-se para novos máximos (alguns sectores já o fizeram) num ano em que a economia global regista a maior recessão económica desde a Segunda Guerra Mundial.

Eis dois fatores que justificam essa possibilidade.

‘Even lower for much longer’

Se no pré-Covid se previa o cenário em que as taxas de juro se manteriam baixas durante mais tempo (“lower for longer”), a crise pandémica vai provavelmente fazer com que elas se mantenham ainda mais baixas durante ainda mais tempo (“even lower for much longer”). Isto mesmo que a inflação comece gradualmente a subir ao longo dos próximos anos, piorando ainda mais os níveis das taxas de juro reais, que já se encontram negativas há alguns anos.

Só dessa forma é que o sector público a nível global vai conseguir gerir a explosão de endividamento que está a acumular durante esta crise. Com uma forma de repressão financeira a nível global, com taxas de juro reais negativas durante mais tempo.

Uma consequência desta repressão financeira é que a classe acionista ganha bastante valor relativo face à classe obrigacionista, a médio prazo, para o investidor que tem disponibilidade para aceitar a volatilidade que é inerente ao mercado acionista. Por caras que as ações pareçam, se se olhar para métricas de avaliação mais tradicionais de uma perspetiva histórica, a verdade é que pelo menos continuam a oferecer a possibilidade de um retorno real positivo a médio prazo.

O que é três vezes mais poderoso que uma “bazuca”?

Desde a grande crise financeira de 2008 que se usa a metáfora da “bazuca para ilustrar a dimensão dos estímulos económicos que têm sido implementados pelos principais bancos centrais do mundo, e o mesmo tem sido feito agora. Mas segundo as estimativas mais recentes, os estímulos monetários e fiscais que estão a ser atualmente implementados para combater a crise pandémica são cerca de três vezes maiores que os que foram implementados durante a grande crise financeira.

Para além disso, e ao contrário do que aconteceu durante a crise de 2008 e durante a crise soberana da periferia europeia entre 2010 e 2012, estes estímulos estão rapidamente a chegar à economia real, através de crédito para as empresas e de rendimentos para os consumidores. A título de exemplo, nos EUA, no último mês registaram-se recordes históricos na taxa de poupança (cerca de 33% em abril) e no crescimento do rendimento dos particulares (+10,5% em maio).

Verdadeiramente surpreendente dado o nível de desemprego no país, e escusado será dizer que grande parte do crescimento do rendimento veio de transferências do Estado, que subiram praticamente 90% em termos homólogos nesse mês. Isto para além dos inúmeros programas de investimento público e recuperação económica que se estão a preparar (um Fundo de Recuperação de 750 mil milhões de euros na Europa, um programa de 1 bilião de dólares nos EUA, segundo as notícias mais recentes), que também eles fluem diretamente para a economia real.

Este tipo de estímulos – de crescimento da massa monetária em circulação – vão continuar presentes na economia bastante para além do período de crise por que estamos a atravessar, e se há entidades que estão preparadas para absorver a maior fatia destes estímulos são as empresas, através dos seus lucros.

O consumidor mediano não vai simplesmente guardar o excesso de poupança que gerou durante esta crise quando a situação de saúde pública normalizar (ela irá normalizar…). A não ser que a sociedade global desenvolva um novo nível de consciência durante o confinamento, que a afaste do seu hábito consumista, este excesso de poupança vai acabar por estimular a economia através do consumo.

Esta é uma perspetiva paradoxal durante uma crise, e politicamente incorreta dadas as inegáveis dificuldades por que muitas pessoas estão a passar. Mas em termos agregados, é a realidade económica que os números cada vez mais revelam.

Quais as consequências de taxas de juro muito baixas e de uma bazuca vezes três

Por benigno/otimista que este cenário seja, a verdade é que ele não é totalmente isento de consequências ou riscos. O mundo está a implementar a maior e mais heterodoxa experiência económica dos tempos modernos. Por mais justificada/benéfica que ela seja a curto prazo, para enfrentar os desafios da crise pandémica, a longo prazo são várias as consequências negativas que dela podem resultar.

Seja como for, esses riscos só surgirão mais tarde. Por agora, a melhor estratégia para os investidores parece ser continuar a aproveitar os momentos de maior pessimismo para investir, cientes de que a resposta económica a esta crise está à altura dos desafios, mas que não é isenta de riscos no longo prazo.