Em 2001, Ângelo Semedo, um rapaz de 17 anos era baleado mortalmente pelas costas quando fugia da polícia, suspeito de furto de um carro que não furtara. Se fosse vivo, Ângelo teria agora 40 anos, seria pouco mais novo do que Odair Moniz, que morreu no passado dia 21 de Outubro porque também se pôs numa fuga desproporcionada ao ser mandado parar pela polícia por pisar um traço contínuo, a conduzir o seu carro, era madrugada, consta que ia buscar cachupa. Agora, nenhum dos dois está vivo.

Por que se foge da polícia a ponto de pôr a própria vida em risco e chegar a ser morto? Que pânico mortal é este que leva pessoas a fugir como se fugissem da morte e acabassem mortos a tiro? A desproporção da fuga só compara como a desproporção da violência. E é de desproporção que temos de falar. A desproporção da fuga é já um grito de medo e violenta expectativa de mais violência. Ângelo estava desarmado, era menor, calhou estar num carro, e tentou fugir à morte sem sucesso. Odair era pai de 3 filhos, calhou pisar um traço contínuo, também fugiu como se fugisse da morte e não conseguiu. Fugiam assim porque a polícia naquele bairro era para estas pessoas uma ameaça absoluta.

Há a desproporção da violência e todas as perguntas que têm de ser investigadas a fundo sobre aqueles disparos mortais. Bem como todas as respostas que a previnam ou dissuadam, bodycamstasers em ver de armas de fogo, formação, muita formação e critérios claros na admissão nas forças policiais. Mas há outras perguntas e outras respostas, que têm que ver com a desproporção da fuga. Que rapazes de 17 anos, que homens de 43, pais de 3 filhos, se poriam em fuga nas avenidas novas de Lisboa, ou nos aliados no Porto? Qual a raiz do pânico mortal que mata um rapaz que não fez nada ou um homem que pisou um traço contínuo?

Quando Ângelo Semedo, ainda menor, foi baleado pelas costas em 2001 era António Guterres primeiro-ministro, era António Costa ministro da justiça, era Severiano Teixeira ministro da administração interna. Em janeiro de 2002, por iniciativa do Moinho da Juventude, associação cívica da Cova da Moura, jovens residentes no bairro sentaram-se à mesma mesa com responsáveis das esquadras da PSP. Acordaram organizar várias actividades conjuntas – levar crianças às esquadras, deixá-las experimentar os bonés da polícia, até os coletes à prova de bala, e organizar partidas de futebol com equipas mistas, de cada lado jovens e agentes da PSP. As pessoas assim conheciam-se, as pessoas por detrás das fardas, por dentro da pele de cada um. Restabelecia-se um começo de confiança. A que devia ter garantido a vida a Ângelo em 2001, a que deveria ter segurado a vida de Odair 23 anos depois.

Esta viragem inspirou um programa que se prolongou pelos anos seguintes, envolvendo milhares de crianças, que foram levadas à praia, ao cinema, a passeios de comboio. Um chefe da PSP, João Pais, e uma socióloga, Mónica Santos (que em 2005 começara um estágio profissional não remunerado na secção de estudos criminológicos da PSP) desenvolveram o projecto. Chamava-se ‘Um amigo hoje… um futuro amanhã’, sublinhando bem do que se tratava de conseguir: um futuro semeia-se no convívio e na confiança. O programa tornou-se exemplar, referência que, lia-se nas notícias em 2007, as autoridades policiais quiseram alargar a todo o país.

Mas por alguma razão, hoje, a polícia de proximidade, de confiança, desapareceu da Cova da Moura, voltou a que aponta o cano de uma espingarda e faz temer pela vida. A desproporção da ameaça, a desproporção da fuga e a morte no fim da corrida, a tiro, fazem parte do mesmo sistema. Jakilson Pereira, actual presidente do Moinho da Juventude, fala de uma mudança em meados da década passada. O que falhou depois de tanto caminho feito? Onde estão as pessoas que souberam criar um programa que deu tantas provas? O que se vai fazer para o retomar? Onde estão as responsabilidades políticas pela desproporção, da violência e da fuga?

Há dias, a ministra da administração interna, Margarida Blasco mostrou-se chocada com os tumultos de protesto pela morte de Odair. Além de desprovida de uma palavra de contexto, que lhe cumpria, sobre as razões do sucedido, soube ser demagógica ao ligar a necessidade de “acabar com estes distúrbios” que qualificou como “perfeitamente inadmissíveis” (que sentido quis dar ao advérbio “perfeitamente” é um mistério sombrio) à necessidade de permitir “às populações deslocar-se e fazer a sua vida laboral normal e acompanhar as suas crianças à escola”.

Mas de que normalidade está a falar? Será uma vida normal o que se leva na Cova da Moura e nos bairros mais racializados da Grande Lisboa e Grande Porto quando, ao regressar a casa, se pode acabar o dia de trabalho deitado no chão com armas apontadas à cabeça? Não é uma exigência de normalidade as crianças não terem de recear cruzar com um agente da polícia? Não é uma exigência de decência as crianças poderem, sem risco maior, como em qualquer outro lugar, tomar as ruas e pisarem vários riscos sem serem tomadas como um risco a suprimir com toda a força?

O Ângelo não é um caso isolado. Como ele, outros menores morreram na sequência de intervenção policial. Em 2004, no bairro 6 de Maio, Teti (José Carlos Vicente) com 16 anos; em 2009, na Quinta da Lage, Kuku (Edson Sanches) com 14 anos. Como o Ângelo, todos em bairros na Amadora. Também se conta nesta tragédia a morte de agentes da polícia, por exemplo o chocante assassinato de Irineu Diniz, baleado com 22 tiros, tinha ele 33 anos.

Mas, a empatia selectiva da ministra choca. Fala da “nossa” polícia, sim é a nossa polícia, tem mesmo de ser a nossa polícia, mas tem de ser a polícia da Cova da Moura também para ser a nossa polícia. Por que não disse, com o mesmo tom de implicação, que se sentisse na voz, que está em causa a “nossa” Cova da Moura? Aliás, quem no presente Governo chama para o interior do pacto social, da pertença comum, de reconhecimento e da solidariedade aqueles que vivem o pânico do encontro com as forças policiais nestes bairros? O Presidente da República esteve no bairro do Zambujal, sem avisar a comunicação social, conversou com familiares de Odair Moniz, só dando notícia disso depois. Fez bem.

Lembrar Ângelo Semedo e o que se fez depois da tragédia da sua morte é perguntar, com incredulidade, como é possível que no intervalo de uma geração o mesmo pânico mortal, a mesma desproporção da fuga persistam na Cova da Moura? Como é possível que nada se tenha avançado sobre o que dizia em 2005 uma dirigente do Moinho da Juventude – «O bairro serve para vender jornais quando aqui morre alguém. Porque é que os jornais não visitam a Cova da Moura em dias de festa?”.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.