No início da pandemia em Portugal, escrevi aqui mesmo uma coluna que intitulei “A vantagem portuguesa”. De todas as que escrevi até hoje, foi a mais partilhada, elogiosa que era do sentido comunitário que nove séculos de história materializam numa adesão voluntária e imediata às ordens do Governo e das autoridades de saúde. Quando, ainda hoje, olhamos para o descalabro mortífero de Espanha, Itália, França, Reino Unido, Estados Unidos, Canadá, Holanda, Suécia e Bélgica, podemos dar-nos por contentes.
Mas, o tempo da vantagem, aquela em que bastava sermos nós próprios, acabou.
Em primeiro lugar, precipitámo-nos. Não deveríamos ter desconfinado sem nos encontrarmos numa situação de contágio inferior a uma ou duas dezenas de casos por dia, como seria próprio de um pequeno país como o nosso, e não por mais de duas centenas de novas infeções diárias, como se verificava no início de maio.
Em segundo lugar, como adoramos a improvisação, não planeámos. Não se conhecem cenários alternativos feitos pela Direção Geral de Saúde ou pelo próprio Ministério da Saúde para acorrer a eventuais réplicas ou surtos secundários. Não se conhecem porque não há. As medidas anunciadas são exatamente as mesmas que sempre foram aplicadas: testar, isolar, tratar. Tudo certo, mas… não havia técnicos, agentes de segurança pública nem pessoal médico para acorrer a essas necessidades.
Apenas agora, quatro semanas depois, começamos a ver os recursos a surgir e a serem alocados. Aplicações de rastreamento não existem. Acesso à geolocalização de telemóveis de infetados não é permitida nem é feito esforço para que seja. Garantir o isolamento dos infetados no seu domicílio ou, na sua impossibilidade, em locais disponibilizados pelas autoridades para esse fim, é algo que acontece às pinguinhas. Os transportes públicos continuam superlotados e o Governo reponde com “médias de ocupação”. Todos os dias cai um lar, de vez em quando uma prisão, mais ali uma escola. Para tudo poderia e deveria haver planos de contingência prontos a ativar com um simples “carregar de botão”. Mas não.
Em terceiro lugar, não reconhecemos os nossos erros. Teimamos em interpretar os dados de uma forma própria e não a que é aceite pela maioria dos outros países. Para sermos um país seguro, é necessário que a taxa de infetados não exceda 20 novos contágios por 100 mil habitantes/dia. Como o nosso melhor indicador é a taxa de mortalidade, insistimos em que, com esse e com o número de testes diários realizados a conclusão deveria ser clara aos olhos de todos: não há um problema Covid em Portugal. Mas há.
Finalmente, a economia é mesmo quem mais ordena. Fazendo aprovar um orçamento suplementar otimista, com apenas 6,9% de queda no produto, o Governo faz agora tudo para que essa previsão se materialize e teima em manter a economia a pleno gás. Não quis retroceder nas medidas aos primeiros sinais para não comprometer a época turística. Como se constata com a saga do “entra, não entra” na lista do Reino Unido, o Governo esqueceu a premissa mais importante da gestão de pandemias: tratar da saúde é a melhor forma de tratar da economia.
É verdade que temos notáveis características de identidade e coesão. Foram elas que nos transportaram na crise da década passada e que nos ajudaram no início da pandemia. Mas quando é preciso sentar-se, planear, reconhecer os erros e estabelecer prioridades corretas reencontramo-nos com os defeitos que, infelizmente, correspondem ao estereótipo porque fomos sendo conhecidos. Precipitamo-nos, improvisamos e achamos que sabemos mais que os outros.
Quando colocados perante a inevitável encruzilhada, optamos pelo caminho baixo, chamamos a polícia, aplicamos multas e mandamos prender “os irresponsáveis”. Deixo de fora a lamentável prestação da Diretora-Geral de Saúde, campeã da incoerência e da insistência na regra-geral, por oposição ao concreto necessário…