“Vós que entrais, abandonai toda a esperança”, Dante Alighieri

(Lavro aqui a minha tradicional declaração de interesses: tendo uma orientação em termos gerais reconhecidamente à esquerda, não tenho partido político e estou cada vez mais longe de me identificar com qualquer das ofertas feitas. Comecei por encarar os debates e os tempos de antena como fonte de humor. Visto um assinalável número do que mais se assemelhou a fast dates, a vontade de rir foi interrompida por uma sensação de vazio. Dali podem ter resultado ódios pontuais de estimação mas, em momento algum, uma linha condutora para o país.

Se dá vontade de rir num momento inicial, quando se reflecte sobre isso não há como evitar uma sensação de estupefacção. A sério que estes são aqueles que se propõem (e alguns conseguirão) representar-nos? A sério que alguém achou boa ideia pôr umas pessoas em pares a discutirem o destino do país em cerca de doze minutos cada? O que se esperava atingir? Transformada a Justiça num imenso Big Brother, onde quase votamos para o próximo a ser preso em praça pública, tratou-se agora de converter a política numa espécie de espectáculo circense, em que ganha o que fizer o mais aparatoso golpe baixo.

Foi assim no debate dos líderes, foi assim nos debates alargados dos partidos com representação parlamentar e foi também assim no dos partidos ditos pequenos, estes ainda com a particularidade de alguns dos intervenientes apresentarem claros sinais de que não estão habilitados a representar seja o que for, com exclusão deles próprios.

Ainda assim, o único apelo que faço é que vão votar. Há pessoas que morreram e famílias que se sacrificaram para que pudéssemos ter esse direito e, se não em respeito por quem se candidata, pelo menos em memória daqueles. É o que farei. Não porque acredite em promessas avulsas de quem visa única e exclusivamente subvenções para alimentar a sua própria clientela política mas porque devo isso a quem lutou e nada ganhou.)

Pode parecer estranho nesta época eleitoral mas, em contraciclo, não venho propriamente falar dos debates e discutir quem ganhou. Acho que, atento o modelo instituído, todos perdemos mas também sei que estou praticamente isolada quanto ao facto de achar que o que de verdadeiramente importante se deveria discutir não cabe num formato de luta de galos.

Somos instados a viver num tempo de fast forward onde nada que do permanece interessa realmente, inundados de torrentes de notícias que não deixam a menor margem para discussão nem de ideias, quanto mais de ideais. O que interessa agora é a velocidade e, menos e quase nunca, o conteúdo. Quem pára para reflectir ou pesquisar dados é lento. Quem procura o menos óbvio para formar opinião é hesitante. Quem não se alinha de imediato com a voz corrente não é sequer dissidente mas apelidado de louco. Quem ousa levantar a voz e dizer que o caminho não tem de ser necessariamente aquele que temos trilhado é imediatamente silenciado.

Nesta busca pelo imediato, perdemos todos o foco. Foram-se os valores, ficou a expressão material pecuniária imediata. Num vasto leque de anúncios de soluções milagrosas para problemas específicos não há uma ideia de fundo para o país. Um rumo. Uma aposta num segmento de actividade específico em que possamos ser melhor do que os outros. Um reforço sério da educação ou da saúde. Uma linha condutora na distribuição dos milhões da designada bazuca europeia que não se prenda com amiguismos. A atribuição de efectivos meios para a Justiça que permitam, por exemplo, que os julgamentos não sejam adiados por falta de salas ou meras indisponibilidades informáticas e que cada juiz seja atribuído a um processo específico por sorteio e, não, por deliberada intervenção humana.

Passados os momentos pitorescos e a selvajaria de alguns debates, o que nos fica não é, sequer, a certeza de que votaremos no melhor. Não há melhores no vazio, apenas podendo cada um de nós escolher entre o menor dos males. Mas, bem sabendo que costuma ser este o fado português, o que eu gostava de um dia poder dizer é que votei convictamente por concordar com as ideias.

No deserto actual, ir votar não é um exercício de cidadania plena. É um mero acto de respeito pelo passado. E a culpa é de todos nós. Dos que nos dizem representar e dos que lhes permitem tal. Talvez valha a pena pensar nisto. Pensar que na vida política há vários vilões mas muito poucos heróis (menos ainda alegados homens providenciais, as mais das vezes dizendo uma coisa e o seu oposto, ao sabor das suas conveniências) e que o verdeiro acto de coragem teria sido fazer o que não foi feito: pensar, ouvir, reflectir e tentar colocar em prática o que fosse melhor para o País.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.