A dignidade da nossa nobre profissão está sob ataque em múltiplas frentes. Não podemos ficar calados enquanto os pilares da justiça que jurámos defender são sistematicamente minados.
O SADT: uma luta por respeito há duas décadas
O Sistema de Acesso ao Direito e aos Tribunais (SADT) está paralisado no tempo. Uma afronta à dedicação incansável dos Advogados que defendem os mais vulneráveis da nossa sociedade.
Imaginem isto: um Advogado que actua enquanto Patrono Oficioso em 2004 recebia 100€ por cada processo que acompanhava. Hoje, 20 anos depois, recebe exatamente o mesmo. Entretanto, o custo de vida disparou, com uma inflação acumulada que ultrapassou os 30%.
Na prática, estamos a exigir que os defensores da Justiça trabalhem por menos de dois terços do que recebiam há duas décadas!
Esta desvalorização sistemática não é apenas um número frio. É antes um grito silencioso de desespero de uma classe profissional essencial ao funcionamento do Estado de Direito. É a erosão lenta e cruel do compromisso com a Justiça para todos. Esta não é apenas uma questão de dinheiro. É uma questão de dignidade, de Justiça e do próprio futuro do nosso sistema legal.
Durante quanto tempo mais vamos permitir que esta injustiça continue?
O Protocolo AIMA: a banalização do saber jurídico
O recente protocolo celebrado pela Ordem dos Advogados (OA) com a Agência para a Integração. Migrações e Asilo (AIMA) não é apenas uma afronta à dignidade da Advocacia. É uma degradação alarmante da nossa nobre profissão, oferecida como serviço low cost.
Mais grave ainda: ao atribuir um valor irrisório de 7,50€ por processo de regularização de imigrantes, este acordo transmite uma mensagem perturbadora: a de que os direitos e a situação legal destes cidadãos vulneráveis são considerados de pouca importância.
Esta desvalorização não só compromete a qualidade do serviço jurídico prestado, mas também põe em causa os princípios fundamentais de Justiça e Equidade que jurámos defender.
Por irrisórios 7,50€ por processo, espera-se que os Advogados realizem um trabalho complexo e de enorme responsabilidade:
- Análise da informação comprovativa recolhida (através da apresentação de documentos e/ou do acesso a bases de dados);
- Promoção da audiência prévia (notificar o interessado sobre o projeto de decisão que a administração pretende tomar; dar ao interessado a oportunidade de se pronunciar por escrito sobre esse projeto; permitir que o interessado apresente novos argumentos, documentos ou esclarecimentos; analisar as alegações e elementos apresentados);
- Elaboração da competente proposta de decisão administrativa
- Demais atos instrutórios considerados relevantes.
Tudo isto por um valor que não cobre sequer uma hora de estacionamento em algumas zonas de Lisboa!
Comparemos: um canalizador cobra em média 50€ por hora. Um Advogado, com anos de formação universitária, estágio e prática jurídica, receberia 7,50€ por um processo em que está em causa a preparação da decisão da AIMA em relação à regularidade da permanência de um cidadão estrangeiro em território português.
Esta disparidade gritante não é apenas uma questão de dinheiro – é um ataque direto ao Estado de Direito.
A mensagem é clara e alarmante: os conhecimentos jurídicos essenciais para garantir os direitos fundamentais dos imigrantes e a integridade do nosso sistema jurídico são considerados quase sem valor.
Esta é uma afronta não apenas aos Advogados, mas à própria noção de Justiça que jurámos defender. Não podemos – não devemos – aceitar esta desvalorização sistemática e até mesmo perigosa da nossa profissão. A dignidade da Advocacia não tem preço e certamente vale infinitamente mais do que 7,50€!
A Portaria que ameaça a nossa independência
A recente Portaria que permite a nomeação de Advogados a desempenhar a função de Patronos Oficiosos, por Juízes, Ministério Público ou Órgãos de Polícia Criminal não é apenas um retrocesso. É uma bomba-relógio plantada no coração do nosso sistema judicial.
Imagine um Advogado nomeado pelo mesmo Juiz que julgará o caso. Como pode o arguido, já vulnerável, confiar na imparcialidade de um processo onde o seu defensor foi escolhido pelo próprio julgador?
Como pode o Advogado exercer plenamente a sua função, sabendo que futuras nomeações podem depender de agradar a quem o nomeou?
Esta Portaria não é uma mera alteração processual. Mas sim um ataque direto aos princípios fundamentais da Justiça:
- Independência da Advocacia: aniquilada quando o defensor é escolhido pelo acusador ou julgador.
- Igualdade de armas: destruída quando a defesa é potencialmente comprometida desde o início.
- Confiança no sistema judicial: severamente abalada aos olhos do cidadão comum.
Estamos a assistir à erosão dos pilares do Estado de Direito em tempo real. Esta Portaria não apenas compromete a defesa. Ela mina os próprios alicerces da Justiça.
A independência da Advocacia – fundamental para garantir um julgamento justo – é considerada descartável. Não podemos e não devemos aceitar esta subversão perigosa do nosso sistema judicial.
A remuneração dos membros dos órgãos da Ordem
Terminou o período de consulta do projeto de Regulamento de Remuneração, Compensação e Senhas de Presença dos Membros dos Órgãos da Ordem dos Advogados.
A Ordem dos Advogados enfrenta uma conjuntura sem precedentes:
- Declínio Significativo de Receitas
A redução drástica no número de advogados-estagiários (por exemplo, em Lisboa passámos de 700 para pouco mais de 200) e de novas inscrições ameaça a principal fonte de financiamento da Ordem. Esta tendência, se não for revertida, comprometerá a nossa capacidade de cumprir a nossa missão essencial.
- Aumento de Despesas
– A aquisição de novas instalações representa um investimento substancial num momento de incerteza financeira.
– A criação de novos órgãos remunerados, imposta por lei, adiciona custos fixos significativos à nossa estrutura.
– A atribuição de remuneração a órgãos já existentes;
– A proposta de senhas de presença para membros de órgãos com aplicação imediata é incompatível com a nossa realidade financeira e com os princípios de serviço público que norteiam a nossa profissão e devem nortear o exercício de funções enquanto membros da Ordem dos Advogados.
O Projeto de Regulamento propõe um cenário financeiramente temerário:
– Um limite máximo mensal de 5 Unidades de Conta (1 unidade de conta = 102€) por membro do Conselho Geral.
– Com 21 membros, isto representa um potencial gasto mensal de 10.710,00€.
– Anualmente, estamos a falar de um valor astronómico de 128.520,00€, apenas para um órgão!
Como guardiães da integridade da Ordem dos Advogados e defensores da dignidade da nossa profissão, temos a obrigação de agir com prudência e visão de longo prazo.
O futuro da Ordem dos Advogados e, por extensão, a integridade da Justiça portuguesa, está nas nossas mãos. Temos a responsabilidade histórica de garantir que a instituição que representamos permaneça financeiramente sólida.
Que Justiça queremos?
A Advocacia portuguesa está numa encruzilhada histórica. A defesa da dignidade da nossa profissão não é uma opção. Antes, é um imperativo moral e ético. Não podemos aceitar protocolos que nos desvalorizam, nem medidas que comprometam a nossa independência. A luta pela atualização da tabela do SADT deve ser acompanhada por uma recusa veemente de condições que degradem o valor da nossa profissão.
Não podemos permitir que interesses de curto prazo ou pressões externas comprometam os valores fundamentais que jurámos defender. A Advocacia não é apenas uma profissão – é um baluarte da Justiça e da Democracia.
Como disse o ilustre jurista Rui Barbosa: “A Advocacia não é apenas uma profissão, é uma missão. O advogado não é apenas um profissional, é um sacerdote da justiça.” A dignidade da Advocacia não se negoceia! A sua dignidade e, por consequência, o seu respeito defende-se com coragem, integridade e união.
O futuro da Justiça em Portugal depende da nossa ação hoje. Não recuaremos, não nos calaremos, não nos renderemos. A luta pela dignidade da Advocacia é a luta pela própria Justiça. E nesta batalha, não podemos – não iremos – falhar.