Há dias tive a oportunidade de participar numa reflexão no coração da Europa sobre o poder transformacional da tecnologia e as diferentes formas em que os seus desenvolvimentos estão a mudar a nossa civilização. O assunto mais chocante foi a implementação na China de um sistema de “créditos sociais”, também conhecidos como Créditos Sésamo ou Zhima, que, a partir de inúmeras fontes de informação atribuem uma classificação a cada pessoa que condiciona a sua atividade.

Para isso, o sistema recolhe automaticamente informação de inúmeras fontes públicas e privadas, como os lugares visitados física e virtualmente, as multas de trânsito, a quantidade e o tipo de videojogos utilizados ou o estado das suas finanças. O valor do crédito social condiciona e prioriza o acesso a meios e serviços, como escolas, centros de saúde ou fontes de financiamento, bem como o tipo de relações sociais ao alcance de cada pessoa. Embora possa aparentar ser uma simples “gamificação” da vida social, as consequências desse jogo são muito profundas.

É um sistema que já está totalmente operacional e deverá funcionar em pleno até 2020. Durante este ano, o sistema já negou a mais de 11 milhões de pessoas com um crédito social baixo a compra de um bilhete de avião. Para garantir o controlo dos movimentos das pessoas e alimentar este sistema, existem já 117 milhões de câmaras instaladas no país com capacidade de reconhecimento facial e o objetivo é instalar 400 milhões até 2020. Há poucos meses, num concerto com uma audiência de 60 mil pessoas, o sistema de reconhecimento facial permitiu identificar e deter um dos assistentes procurado pela polícia.

Garanto que o anteriormente descrito não é nenhuma ficção orwelliana. Na realidade, o que pode parecer uma distopia científica aos olhos ocidentais é um progresso social na perspetiva oriental, à luz dos quais o bem-estar da comunidade é um valor que se sobrepõe aos interesses individuais, de forma totalmente contrária aos valores da Europa.

A China adota o novo a uma velocidade alucinante. É um verdadeiro laboratório que conjuga a inovação tecnológica com o conservadorismo social, criando uma sociedade regida por valores pós-ocidentais com um resultado totalmente oposto à uniformidade europeia. É uma China digitalizada e disciplinada, impulsionada por um cesarismo digital que tem a sua guarda pretoriana no caudal imenso e profundo de dados fornecidos por modernos sistemas de captura omnipresentes no quotidiano dos chineses.

Mas, como em qualquer outro sistema de tratamento massivo de dados, o elemento diferencial já não é a tecnologia, mas a capacidade de extrair uma história desses dados. No sistema chinês, quem é que define o que é um “comportamento desejável”? Com que critério? Será que os nossos vizinhos vão votar nesse ranking com um sistema semelhante aos “likes” do Facebook? O que vão fazer as pessoas para melhorar a sua classificação social? E como vai reagir a nova casta de excluídos?

Perante estas questões, entende-se a postura cada vez mais radical da Europa na preservação e no fortalecimento da identidade e dos valores que suportam a nossa civilização.