Dos aparentes consensos acaba por romper a inevitável polarização de ideias. No momento que vivemos, existe mobilização popular por tensões intrínsecas à democracia liberal e inquietações marginalizadas durante demasiado tempo. Volvidos quatro anos de Administração Trump, continua a ser incompreensível para parte das elites académicas e políticas, dos dois lados do Atlântico, o êxito do outsider empresário nas eleições presidenciais de 2016.

Alguns, admitindo compreender a vitória, parecem atribuir ao líder todo o “mérito” desse feito, enquanto agente disruptivo que terá galvanizado e manipulado o eleitorado de forma invulgar. Fazem-no porque exageram a importância do mensageiro em vez de analisarem a mensagem e o contexto que o catapultou. Sublinhe-se que “os agentes populistas são especialistas em detectar e politizar problemas sociais que, intencionalmente ou não, não estão a ser tratados pelas forças políticas dominantes de modo adequado” (Cas Mudde & Kaltwasser 2017, Gradiva).

A própria incompreensão do fenómeno é sintoma de que a chamada “polarização” do debate político não se restringe aos EUA. Passou a ser mais confortável apontar loucura, irracionalidade ou más intenções aos opositores, do que tentar conhecer humildemente os motivos da sua escolha eleitoral. Haja ou não reeleição de Trump, o contexto que o favoreceu persistirá.

Joe Biden revela em “Why America Must Lead Again” na Foreign Affairs uma motivação especial em retornar ao internacionalismo liberal, pela restauração de uma missão moral no mundo e pela aplicação de sanções face a ameaças iliberais. Porém, parte do eleitorado reprova as máximas cosmopolitas que têm justificado um intervencionismo externo penoso para as famílias americanas. Se Biden vencer, terá de lidar com uma predisposição popular que já não se deixa impressionar por esse discurso e que exige mais atenção à resolução de questões económicas e securitárias domésticas.

O domínio em que Biden esteve mais confortável para confrontar Trump foi, sem surpresa, o da pandemia. Saliento três aspectos:

1) por muito que Biden tente capitalizar a fraca popularidade de Trump na gestão deste infortúnio, a pandemia é um choque exógeno e pontual, não comparável aos problemas que subsistem na conjuntura norte-americana;

2) a eficácia das lideranças é agora um critério crescentemente valorizado e qualquer Presidente enfrentaria dilemas em tempo real quanto ao difícil equilíbrio entre minimizar uma recessão económica e abrandar o ritmo de contágios;

3) em política, vale mais parecer do que ser, recomendava Maquiavel. Aqui, Trump não conseguiu aplicar este conselho, pois o seu registo nas aparições públicas fez transparecer que o Presidente era mais culpado do que realmente foi. Qualquer hábil político com experiência teria salvaguardado a própria imagem nos devidos momentos, aludindo à autoridade conferida aos Estados nesta matéria.

Nem só de pandemia se fazem as decisões políticas, mas é verdade que ela tem deixado por toda a parte as sementes para um futuro carregado de endividamento, sacrifícios económicos, convulsões sociais e exacerbação do debate político. Um cenário que destoa da harmonia que muitos visionam num futuro pós-Trump.

Assim, antevê-se a intensificação do apelo popular à garantia de “lei e ordem” que preencheu a retórica presidencial perante os protestos violentos e tensões raciais. A par da expansão de violência civil, a influência da “cultura de cancelamento” – incentivando a denúncia, a difamação e a destruição de património às mãos dos novos iconoclastas intolerantes – continuará a corroer a sociedade, das universidades à praça pública. Enquanto todo aquele que desafiar a ortodoxia dominante sentir que poderá ser alvo de intimidação totalitária e de subsequente cobardia colectiva, existirá combustível para polarização.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.