A demagogia tomou de assalto a política há já muitos anos. Na verdade, política e demagogia sempre estiveram de braço dado, embora a fiscalização cada vez mais apertada, a voz absurda das redes sociais e um jornalismo nalguns casos enfraquecido e, noutros, assumidamente especulativo ou ideológico, envenenem mais ainda o debate público. A demagogia deu lugar ao populismo politicamente extremado – à esquerda, à direita e até no centro. Neste contexto sulfuroso, os políticos, em particular os que controlam lugares de topo, têm a responsabilidade acrescida de defender, até em prejuízo próprio, a confiança nas instituições.
Não se trata de pedir a Luís Montenegro que se converta numa espécie de Mahatma Gandhi. O antigo chefe da bancada parlamentar do PSD tem no ADN um robusto sentido de combate que se adequa aos ares do tempo e não podia ser de outra forma. Acontece que este impulso guerrilheiro corre o risco de tornar-se excessivo, esmagando, pelo caminho, a obrigação de colocar o país à frente em todas as decisões. Atingir este patamar político é o que transforma políticos circunstancialmente líderes do governo em figuras determinantes para o desenvolvimento e união do país.
Ora bem, a amaldiçoada Spinumviva deveria ter cessado de existir no dia exato em que Montenegro ganhou as eleições – isso hoje é evidente, talvez até dolorosamente evidente até para o próprio. Este pecado original desencadeou, como era previsível, vários derrames que mancham o Executivo e curto-circuitam a relação de confiança com os portugueses.
É verdade que o conflito de interesses não está de todo confirmado, mas a duplicidade do PM manchou a sua autoridade política como não era imaginável há menos de um mês. O caminho percorrido até então, não sendo olímpico, superava as expectativas, dava conforto aos investidores e estabelecia um ponto de referência.
Disto isto, é importante notar que as dúvidas sobre a casa da Travessa do Possolo – Montenegro tem de entender que já não vive nos tempos de Cavaco… – são apenas a longa cauda do enxofre populista, mas este ruído alimenta-se da úlcera original e não vai parar – mesmo depois das eleições previstas para maio. Quem julga o contrário vive em negação.
É por isso que Montenegro revelou algum sentido de Estado em pedir o voto de confiança, mesmo que isso também o poupe, no imediato, a uma CPI desgastante. O caminho da clarificação é esse, devolver já a palavra ao Parlamento, mas é preciso mais: é fundamental que o PSD também se pronuncie sobre a continuidade do presidente do partido.
Perante a dimensão do desgaste, o correto seria que fosse marcado um congresso eletivo capaz de esclarecer as dúvidas que ainda cercam o primeiro-ministro. O PSD ainda o quer? O comunicado de apoio escrito na quarta-feira pelo diretor de comunicação do Governo – e assinado por todas as estruturas distritais e regionais laranja – é uma fatal mistura entre partido e Estado. Os apoios são genuínos, mas a forma matou a seriedade do conteúdo. A realização de um congresso extraordinário é, por isso, a única forma transparente para relançar a proposta eleitoral do PSD/CDS e evitar uma hemorragia de votos.
Montenegro tem outra vez uma bifurcação pela frente. Não fechou a empresa quando devia, mas tem uma rara segunda vida: pode repropor-se ao país, mas deve fazê-lo legitimado por um novo mandato interno. O presidente já sinalizou que aguardaria por esta clarificação política. Parlamento, na terça. O PSD, a seguir. Por último, os votos do país – sem saltar mais etapas.