Felipe González disse em tempos que a política se resume à capacidade de interpretar o estado anímico dos cidadãos. Tomando o aforismo como verdadeiro, o quadro partidário saído das eleições de 28 de Abril espelha na perfeição a acrimónia e a polarização que caracterizam os ânimos em Espanha. O bipartidarismo consolidado pelos partidos popular e socialista na década de 1990, que atingiu o seu pico nas legislativas de 2008, acabou.

Há fracturas entre constitucionalistas e independentistas, entre nacionalistas e cosmopolitas, entre esquerda e direita, dentro da esquerda, dentro da direita, e dentro dos nacionalismos. Os resultados eleitorais lembram, em tom admonitório, as palavras de Thomas Macaulay: quem deseje conhecer até que ponto se pode debilitar e arruinar um grande Estado deve estudar a História de Espanha.

O país regressará às urnas no dia 26 de Maio para eleições europeias, mas também para municipais e doze autonómicas. Isto significa que os partidos têm incentivos acrescidos para esperar e perceber a correlação de forças que sairá destes escrutínios. Espanha continuará em campanha, com contaminação cruzada entre o palco nacional e as diferentes realidades locais. Assim, mais do que olhar para hipotéticos acordos partidários, vale a pena analisar a reconfiguração do quadro político, até para aferir as hipóteses de estabilidade a prazo.

Manual de resistência

Embora longe da maioria absoluta, o resultado de Pedro Sánchez é notável. Importa recordar que, em Dezembro de 2015, conduziu o partido socialista ao pior resultado de sempre em legislativas. Como deste acto eleitoral não saiu um governo, no ano seguinte os espanhóis foram novamente chamados a votar e Sánchez conseguiu o que parecia impossível: subtrair à anterior derrota histórica cinco mandatos e cerca de 150 mil votos. Foi um desastre sem paliativos. Após novo fracasso, desta feita nas eleições galegas e bascas, acabou demitido, com o golpe de misericórdia desferido pela figura tutelar de González.

Sánchez voltou à estaca zero, apoiou-se nas bases contra os barões do partido e reconquistou a liderança do PSOE. Apesar dos continuados ataques internos e externos, de erros clamorosos de gestão política e de inúmeras polémicas, chegou ao poder por via de uma moção de censura. Sem legitimidade eleitoral e dependente de alianças com radicalismos de diferentes tipos, o seu governo caiu ao fim de oito meses. Por tudo isto, o resultado agora conseguido pelo PSOE é francamente positivo, sendo três as razões que o explicam.

Em primeiro lugar, a invulgar perseverança de Sánchez, de resto alardeada pelo próprio – as suas memórias políticas intitulam-se precisamente “Manual de Resistencia”. Porém, onde uns vêem resistência, outros detectam soberba e uma ambição irrefreável que dispõem o secretário-geral socialista a tudo para se manter no poder. Uns e outros têm razão. Em segundo lugar, o medo ao Vox, partido de ultraderecha que inspirou um temor que o PSOE soube instigar e capitalizar. Finalmente, sendo evidente que a direita só muito dificilmente faria acordos com os socialistas, o eleitorado de centro-esquerda mobilizou-se para prevenir uma eventual coligação à esquerda demasiado dependente do radicalismo programático do Podemos.

O certo é que os principais objectivos de Sánchez – consolidar a liderança no PSOE, mitigar as manchas do passado e adquirir a legitimidade eleitoral que lhe faltava – foram conseguidos. E voltou a ser considerado “de esquerda” pelo Podemos.

Assaltar o céu e cair

O Podemos irrompeu na arena partidária em 2015 prometendo um ataque ao sistema e o fim às “castas” que dominavam a política e a economia. Nas palavras de Pablo Iglesias, líder deste partido de esquerda radical, a ambição era a de “assaltar o céu”. Nas eleições desse ano recebeu mais de cinco milhões de votos e obteve 69 mandatos, um resultado que lhe deu clara influência política.

No passado domingo perdeu cerca de um milhão e trezentos mil votos em relação a 2015 e caiu para os 42 deputados. Mesmo em comunidades autónomas onde a vontade de evitar uma coligação de direita foi ostensiva, como no País Basco, o Podemos teve resultados sofríveis. A derrota é ainda mais pesada se tivermos em conta que desta vez se apresentou em coligação com os comunistas da Izquierda Unida, na plataforma Unidas Podemos.

Face ao desaire, o Podemos depende do PSOE para ser relevante. Iglesias, que recusou apoiar um governo de Sánchez em 2016 e que sempre viu no PSOE um dos pilares da “casta”, encontra agora nos socialistas a chave para um Executivo “progressista” e de “esquerda”. A anunciada intenção do PSOE em governar sozinho, recorrendo a apoios parlamentares pontuais, não agrada a Iglesias, que tudo fará para entrar no governo – inclusive bloquear soluções.

Dispersão à direita

Se à esquerda o principal partido cresce em detrimento do segundo, à direita a dinâmica é inversa. O Ciudadanos, partido assumidamente liberal, obteve o melhor resultado de sempre em votos e mandatos, mas o PP sofreu a pior derrota da sua história, ficando muito abaixo da barreira psicológica de 100 deputados.

Pablo Casado, presidente dos Populares, recuperou ideias e personalidades próximas do ex-Chefe de Governo José María Aznar, e aferrou-se a uma linha fortemente conservadora, tentando evitar a fuga de votos para o Vox. Tudo lhe correu mal. Por um lado, alienou o centro liberal e, por outro, foi incapaz de travar a saída de eleitores pela direita. Apesar de ter mais votos e mandatos que o Ciudadanos, Casado não reúne condições para liderar um espaço de direita muito fragmentado. O PP não tem por hábito substituir líderes perdedores, mas Casado é candidato a inaugurar essa prática.

Por fim, a entrada da ultraderecha no parlamento vale por si mesma, pois não serve para mais nada. Excepto para dividir. A análise aos resultados sugere que a repartição por PP e Ciudadanos dos votos recebidos pelo Vox muito provavelmente daria ao bloco de direita a maioria absoluta. Seja como for, estes partidos não oferecem uma solução aritmética para governar e estão cada vez mais separados por tensões e desacordos profundos.

Futuro instável

Tal como antevi em ensaio neste jornal, direita e esquerda ficaram aquém da maioria necessária para governar porque a fragmentação de voto nestas legislativas não tem precedentes em Espanha. E nenhuma das soluções possíveis permite estabilizar o centro político e resolver problemas prementes, como o separatismo catalão, beneficiado nas urnas pelo ambiente de conflito.

PSOE e Ciudadanos somam 180 mandatos num parlamento com 350 lugares, mais do que o suficiente para a maioria absoluta. Mas, em Fevereiro passado, os liberais aprovaram por unanimidade uma moção que rejeitava qualquer pacto pós-eleitoral com os socialistas, decisão já reafirmada após a noite de 28 de Abril. A aproximação de Sánchez ao independentismo catalão é vista como uma traição imperdoável. Logo, este caminho, o de maior estabilidade e o preferido por influentes sectores da economia, parece inviável.

Uma solução à esquerda exige a aliança de PSOE e Podemos com pequenos partidos, nomeadamente nacionalistas radicais e, em última análise, a associação a forças políticas com um passado recente de apoio ao terrorismo, como o basco E.H. Bildu. Apelidada em Espanha de “frankenstein”, esta solução não só é excêntrica como comprovadamente ineficaz, razão pela qual Sánchez tudo fará para evitá-la.

Sobra então a via de um governo minoritário do PSOE com apoios pontuais no parlamento. É a opção menos má. Contudo, pelos motivos já explicados, é difícil, instável e carece da força exigida à ultrapassagem dos problemas de fundo do país.

As eleições locais podem abrir novas hipóteses, mas o mais provável é que acentuem as clivagens existentes. Trata-se de um país desavindo, com vários abismos políticos a bloquear soluções estáveis de governabilidade. Dada a propensão de Espanha para a ruína autoinfligida, resta esperar que as animosidades tenham limites.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.