Ao contrário de alguns “especialistas” nacionais com uma acrisolada e indefetível fé no impacto do imenso pacote de assistência militar de Washington à Ucrânia nos destinos da guerra, leia-se, na vitória ucraniana, aprovado em 23 de abril no senado, a comunicação social norte-americana de referência tem levantado algumas reticências sobre o efeito miraculoso dessa tremenda ajuda: “dará à Ucrânia um alívio no campo de batalha, mas não mudará a sorte da guerra”; ou, o governo dos EUA espera mais vitórias estratégicas russas, mesmo com nova ajuda.

Muitos outros exemplos se podiam acrescentar. O diretor da CIA, William Burns, foi muito claro sobre as intenções da Casa Branca com aquela ajuda. Se não fosse aprovada pelo Congresso, “existiria um risco muito real dos ucranianos perderem no campo de batalha até ao final de 2024, ou pelo menos colocar Putin numa posição em que possa essencialmente ditar os termos de um acordo político”.

Até “ao final de 2024” significa, na prática, manter a Ucrânia “ligada à máquina” até novembro, data da realização das eleições presidenciais norte-americanas, evitando que, entretanto, o país colapse, obviando as consequências que daí possam advir para a campanha presidencial de Joe Biden.

A própria Administração Biden admitiu que os quase 61 mil milhões de dólares doados/emprestados não serão suficientes para vencer o conflito armado. No que diz respeito aos mísseis de longo alcance ATACMS, Washington reconheceu que, embora tenha enviado uma “quantia significativa”, continua a prever “sucessos táticos” da Rússia nas semanas seguintes.

Não obstante o razoável consenso sobre o limitado efeito estratégico desta ajuda militar, Washington não parece ter um pensamento estratégico sobre como terminar o conflito e muito menos um plano B, uma vez que a estratégia de mudança do regime no Kremlin não funcionou. O plano de tomada do poder e afastamento de Putin por uma rebelião de oligarcas amigos não se concretizou. À semelhança do que aconteceu noutras situações, corremos mais uma vez o sério risco de sermos confrontados com os erros de cálculo estratégico de Washington. Agora mais na modalidade de deixa correr o marfim e depois logo se verá no que é que vai dar.

Simultaneamente, aqui e ali, em particular na Europa, vamos ouvindo vozes belicistas com um tom cada vez mais assertivo. Como referia a Bloomberg, “os líderes europeus não estão apenas a discutir o risco de uma nova guerra no continente. Estão a preparar-se para ela.” É notável a inconsistência de muitos dos argumentos a que recorrem os promotores dessas ideias perigosas, sobretudo quando falamos dos dirigentes de grandes potências europeias.

Por um lado, temos o contorcionismo de elevado recorte do presidente francês Emmanuel Macron. Conseguiu num mesmo discurso (Sorbonne, 25 de abril) propugnar duas ideias contraditórias.

Por um lado, defender a construção de um quadro de segurança comum, que proporcione garantias de segurança a todos, incluindo à vizinha Rússia; e, por outro, estabelecer uma relação íntima entre a segurança da Ucrânia e da Europa como pretexto para validar a ideia de ambiguidade estratégica por si promovida, a qual não passa de um eufemismo para justificar a intervenção militar na Ucrânia de uma coligação militar de países europeus liderada pela França.

Por outro lado, somos confrontados com a pretensão bizarra do primeiro-ministro britânico Rishi Sunak de pretender converter a economia do Reino Unido numa economia de guerra, através do aumento da despesa em defesa dos atuais 2,3% para 2,5%, em 2030, quando não sabe se será primeiro-ministro nem qual o quadro estratégico nessa altura. Sunak terá de explicar em que consiste o seu conceito de economia de guerra numa situação de paz, já que o entendimento comum indica que economias de guerra se criam em tempo de guerra, o que parece não ser presentemente o caso.

Também o chanceler alemão Olaf Scholz veio dar um ar da sua graça, alertando para o facto de os russos estarem a produzir mais armas do que aquelas que precisam para derrotar os ucranianos, como se isso fosse mensurável, exatamente quando o congresso dos EUA acabou de aprovar um dos maiores pacotes de ajuda militar a Kiev, juntando-se ao coro de vozes que defendem estar a Rússia a armar-se para atacar a Europa. Para compor o ramalhete, tivemos ainda as declarações do presidente polaco Andrzej Duda a manifestar a disponibilidade da Polónia para acolher armas nucleares no seu território.

Do outro lado do Atlântico, surgem também vozes pouco tranquilizadoras. Um recente artigo publicado pela “Foreign Affairs”, pertença do prestigiado Council on Foreign Relations, um think tank norte-americano de referência, veio afirmar que “a Europa, e não a NATO, deveria enviar tropas para a Ucrânia.” Para os autores do artigo, “chegou a hora de os europeus entrarem numa guerra direta com a Rússia, para, entre outras atividades, proteger as suas [da Ucrânia] fronteiras e infraestruturas críticas, e até mesmo participar na defesa das cidades ucranianas a oeste do rio Dnieper, por exemplo, Odessa, em caso do avanço do Exército russo.”

Subjacente a este pensamento encontramos o incentivo para os europeus atacarem a Rússia. “Em última análise, a Rússia não pode dar-se ao luxo de lutar simultaneamente contra vários países europeus.” “Além disso, a Europa é muito mais rica do que a Rússia, as suas tecnologias são mais avançadas e a sua população é maior.”

“Tendo em conta que as forças europeias atuarão fora do quadro da NATO e do território da Aliança, nenhuma perda implicará reações no domínio do art.º V e não arrastará os EUA para o conflito.” “O adversário da Rússia não será a NATO, mas uma coligação de países europeus”. Estamos, pois, perante uma recomendação de intenções claríssimas.

Uma vez que começa a ficar claro não serem os EUA capazes de vencer a Rússia recorrendo aos ucranianos, é hora de avançarem os europeus para completarem o trabalho inacabado. E quando a Europa estiver “nas lonas”, e com as suas economias destruídas, virá então a mão salvadora de Washington ajudá-la, como já sucedeu noutro momento recente da sua história.

Nessa altura, os EUA alimentaram a esperança de que as forças alemãs poderiam derrotar as soviéticas. Quando se começou a alterar o curso da guerra, depois da batalha de Estalinegrado (oficialmente finalizada em fevereiro de 1943), quando se tornou óbvio que as tropas nazis tinham os dias contados, os EUA decidiram então vir salvar a Europa, mas apenas em junho de 1944, quando a Europa já tinha o seu tecido económico e social completamente destruído.

No meio das cada vez mais frequentes tiradas absurdas e o estabelecimento de um ambiente internacional esquizofrénico, promotor da inevitabilidade de uma guerra, ainda há quem tenha bom senso. Entre as vozes ponderadas destaca-se a do Comandante Supremo das Forças Aliadas na Europa, o general Christopher Cavoli. Apesar de ter ingressado nas forças armadas norte-americanas como tenente em 1988, já no estertor da Guerra Fria, interiorizou com grande profundidade os desafios que se colocaram aos decisores políticos e militares desse tempo.

Numa entrevista recente, referiu aquilo que os políticos deviam tomar em consideração: a necessidade de os EUA reativarem as linhas de comunicação com Moscovo, que durante a Guerra Fria ajudaram a evitar um conflito nuclear. Como Cavoli salientou, “sabíamos ler os sinais uns dos outros. Sabíamos como enviar sinais um ao outro… quase tudo isso desapareceu agora”, não referindo, no entanto, ser isso uma consequência da tentativa de se tornar a Rússia num estado pária, com quem se devia cortar relações.

Segundo ele, a transformação na prontidão de combate na NATO não parece ter sido acompanhada a nível estratégico, quando se trata de garantir que as potências nucleares não interpretem mal as intenções umas das outras.

Durante a Guerra Fria, havia um “vocabulário muito fino e mutuamente compreendido” entre o Ocidente e a União Soviética. Sabíamos como comunicar verbalmente e não verbalmente as nossas intenções de uma forma que dava previsibilidade e compreensão ao outro lado”; “esta foi uma das principais coisas que utilizámos para gerir a escalada e dissuadir sem risco significativo.”

Entre outros aspetos que foram eficazes no passado incluem-se vários tratados nucleares, acordos e inspeções no local que ajudaram a manter as linhas de comunicação abertas, afirmou Cavoli. “Perdemos o hábito de utilizar estes mecanismos para sinalizar e… abandonámos coletivamente muitos dos acordos e tratados que anteriormente nos davam capacidade para o fazer.”

Pena foi que Cavoli não tivesse ido mais longe e não tivesse referido quem foram os principais responsáveis por sabotar e comprometer a eficácia desses acordos e tratados, começando pelo abandono do tratado ABM (misseis antibalísticos), em 2002, pelo presidente George Bush, indo até à retirada dos tratados de forças nucleares de alcance intermédio (INF), em 2018, e dos “Céus Abertos”, em 2020, pelo Presidente Trump, e outros, na sua maioria da iniciativa norte-americana, comprometendo a manutenção e o funcionamento do sistema de Confidence Building Measures, que funcionou durante décadas sem sobressaltos de maior.

O derradeiro aspeto referido por Cavoli prende-se com aquilo que, nas relações internacionais, se designa pelo “Dilema da Segurança”, e com a perceção do Kremlin sobre o número crescente de forças da NATO posicionadas em locais como os Estados Bálticos e a Polónia, interpretada por Moscovo como uma ameaça.

Quase que recuperando o conceito desenvolvido durante a Guerra Fria da non-offensive defense, Cavoli interroga-se “como é que vamos avançar com tudo isto e restabelecer a nossa capacidade de defesa coletiva sem sermos ameaçadores e sem causar acidentalmente o efeito que não queremos?”. “Penso que o primeiro passo é descrevermo-nos abertamente como aquilo que somos – uma aliança defensiva”.

Reconhecendo a dificuldade em restabelecer práticas passadas durante a guerra quente que está a ser travada entre a Rússia e a Ucrânia, Cavoli dá-nos a boa notícia de se encontrarem em andamento esforços na NATO para se atualizarem algumas das práticas bem-sucedidas no passado e transportá-las para os tempos modernos. Façamos, pois, votos para que este exemplo frutifique, se multiplique e prevaleça sobre ideias absurdas e idiotas.